Perdidos na perplexidade da desarmonia do Estado, o Brasil se arrisca a deixar de lado o problema fundamental que é sua própria razão de ser: a trilogia liberdade, igualdade, fraternidade, no mote da revolução francesa, o direito à felicidade, na fórmula de Jefferson. O que, quando comecei a fazer política, há tantos anos, chamávamos de justiça social.
A fraternidade tem sido pequena, um tema que ficou relegado aos líderes das grandes Igrejas. A liberdade encontra-se envolta em contradições, admitida nas leis, mas irrealizável pelas limitações econômicas e sociais. E a igualdade vai, dia a dia, diminuindo. Nunca o mundo foi tão desigual, nunca as sociedades foram tão desiguais.
Há, para começar, o problema da riqueza. Uns poucos por cento, muito ricos, detêm a maior parte dela, no mundo ou aqui. Somos, infelizmente, o mais desigual entre os grandes países. Basta isso para assinalar a gravidade do problema.
Embrulhada nas malhas da economia, a desigualdade tem marcas igualmente fortes, mas talvez menos visíveis, no acesso ao cerne da justiça social: a educação, a saúde, a segurança. A tecnologia, que livrou o homem de doenças terríveis, que permitiu comunicações instantâneas, que dá acesso a uma soma de conhecimentos inimaginável, é incapaz de resolver esse dilema. É um problema político, no melhor sentido, no único que vale a pena.
A educação generalizou-se quando os países decidiram criar o que se chamou “educação pública”. A obrigação de todos frequentarem escolas aconteceu sobretudo no século XIX; e não só nos países mais ricos, pois temos o exemplo da Argentina e do Uruguai, que a universalizaram naquela época. A nossa Constituição a coloca entre os direitos fundamentais, mas a prática é outra: a grande concentração de investimentos é no ensino privado, vale dizer, na formação de quem já tem o privilégio da condição econômica.
No regime de bem-estar social a saúde é gratuita e acessível a todos. Foi o que pretendi fazer criando o SUDS e foi consolidado pelos constituintes no SUS. Mas o professor Pinotti mostrou, num livro que devia ser leitura obrigatória dos homens públicos, como o SUS foi sendo sistematicamente atacado nos últimos 30 anos. Resultado: a saúde é um privilégio dos que podem pagar.
A desigualdade é também racial: é evidente que não resolvemos, nem mesmo temos enfrentado à altura a herança maldita da escravidão. Os descendentes de escravos são os mais pobres entre os mais pobres, as maiores vítimas entre as vítimas de violência.
Um dos grandes ensinamentos cristãos é que “a casa dividida não permanece”. O País precisa superar suas divisões, a maior delas entre os que têm e os que não têm.
— José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras (Artigo publicado também no jornal O Estado do Maranhão)