Há mais de 30 anos, quando presidente da República, sancionei a lei que instituiu o Vale-Transporte. Quando assumi, o acesso ao trabalho, principalmente nos grandes centros urbanos, era um dos mais sérios das cidades. Primeiro, gerava uma ameaça constante de greves, sendo os transportes deficitários e, com as frotas sucateadas, lutando com um problema insolúvel. O salário do trabalhador, no fim do mês e muitas vezes no meio, não era mais suficiente para o pagamento de seu deslocamento para o trabalho.
E, num tempo de inflação alta, ele não tinha como guardar parte de seu dinheiro para atender ao custo das passagens. Consequências: os trabalhadores faltavam muito ao trabalho e ficavam sem dinheiro para suas despesas — a mais fundamental delas a com alimentação.
Esta semana encontrei-me com um grande empresário desse ramo e ele começou a relatar as agruras que está vivendo o setor, pois a epidemia reduziu em 50% o número de passageiros e, com o aumento do preço dos combustíveis e dos veículos, eles precisam de ajuda do governo. A trágica epidemia que vivemos afetou todos os setores. Se o setor de transportes está assim, o que não falar dos pequenos empresários, dos vendedores ambulantes? E do desemprego — a mais terrível de todas as consequências, porque é responsável pela fome, que pode empurrar para a criminalidade.
As corporações de venda de droga, crime organizado e milícias, ocuparam a periferia das cidades, atingindo toda a população e sobretudo as crianças, recrutadas pelos bandidos para o destino trágico de vítimas — ou dos traficantes, ou das milícias ou, como esta semana, da polícia.
A fome é o maior problema da humanidade. Nas Nações Unidas, quando era Presidente da República, tive oportunidade de levantar o problema. Eu afirmei que a paz, internacional ou nacional, estava envolvida no desafio social maior, sem a superação do qual não se podia almejar a democracia: ela só asseguraria a liberdade, seu fundamento maior, só se realizaria se superasse a fome. Democracia e liberdade. Liberdade contra a fome.
Naquele discurso eu profetizava que o Século 21 seria da socialização dos alimentos. Isto não aconteceu. Era sonho e continuamos com bocas famintas, em todos os lugares do mundo, principalmente na Ásia e na África.
O que mais nos ameaça depois que superarmos essa pandemia — com as medidas recomendadas pelos cientistas e a vacinação de todas as populações — é sermos vencidos pelo desemprego, que aqui no Brasil já era tão profundo, e pela fome.
O empresário do transporte que tratou do problema comigo disse que a mais efetiva medida que já foi feita pelos transportes urbanos foi o Vale-Transporte. Eu acrescento o Vale-Alimentação. Ambos criados por mim, com a visão humanista de ajudar o trabalhador a ir ao trabalho e as bocas famintas a terem sua alimentação. Sem falar no Programa do Leite, em que distribuímos oito milhões de litros por dia às crianças, considerado naqueles anos pela Unesco como o melhor programa de combate à fome e especialmente para a alimentação das crianças.
O tempo passa e todos esquecem, mas o Vale-Transporte e o Vale-Alimentação aí estão, com as mães e os beneficiados ainda lembrando que foi o Programa do Leite que lhes possibilitaram viver.
Que essa pandemia vá embora, que volte a esperança e desapareçam o desemprego e a fome.
— José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado. Escritor. Imortal da Academia Brasileira de Letras. (Artigo publicado também no jornal O Estado do Maranhão)