Oração, política e domínio: a invencível força norte-americana quer perpetuar a ala cristã no poder no Brasil. A rede de políticos, líderes mundiais e homens de fé que constituem a “Família” não é mera teoria da conspiração e muito menos um folhetim da Rede Globo: é 100% realidade.
Os evangélicos têm sido um pilar de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, apesar do fato de ele se comportar de maneiras decididamente não cristãs e frequentemente “usar o nome do Senhor em vão”. Nos bastidores, há dinheiro privado por trás do governo e uma forte aliança de Bolsonaro com a direita religiosa – seguindo em frente.
A questão, em princípio, é de uma incontestável simplicidade. Existe um vácuo na política mundial, mas, paradoxalmente, todos os anos, a direita vem surgindo com uma força imaginável.
Donald Trump nos Estados Unidos, Scott Morrison na Austrália, Jair Bolsonaro no Brasil, Boris Johnson no Reino Unido e Marine Le Pen na França. A líder da extrema direita francesa vem surgindo nas pesquisas e pode ganhar as eleições presidenciais do próximo ano.
A expansão do mal em nome de Cristo
Para quem não conhece a “Família”, os dados são chocantes da secreta organização cristã, variadamente chamada nos Estados Unidos de “The Family” ou “The Fellowship”.
A “Família” não tem hierarquia, não tem funcionários e seus membros preferem não reconhecer a existência do grupo.
A organização é um dos poderes preeminentes por trás dos tronos no mundo inteiro.
Não se limita a administrar um sistema de reuniões privadas de oração para canalizar dinheiro isento de impostos para indivíduos favorecidos, ou promover uma interpretação distorcida das escrituras cristãs. Seu objetivo é minar o próprio projeto de democracia no mundo inteiro.
A “Família”, como qualquer boa teoria da conspiração, dá sentido ao que de outra forma seria absurdo, sem sentido. Começamos com a sede do grupo na capital norte-americana chamada Ivanwal – abriga um grupo de rapazes, todos morando juntos, em estilo de fraternidade, passando os dias praticando esportes ou lendo um volume fino intitulado simplesmente Jesus. Também: os rapazes são doutrinados que estão sendo treinados para governar para o mundo.
A organização no papel não tem nome e nenhuma missão real, além de questões espirituais. Diversos políticos dos Estados Unidos e líderes de nações estrangeiras são presenças constantes na sede do grupo.
Sim, parece que todas as teorias de conspiração malucas promovidas pela direita não tão alternativas, mas no lugar de maçons e judeus obscuros, temos aqui um aglomerado de cristãos. Eles são predominantemente brancos e homens (há uma ala feminina treinada essencialmente para servir a esses supostos mestres do universo) e seu tipo de religião está em algum lugar entre o ultraconservador e uma questão de conveniência.
Para quem se aprofunda na ideologia da “Família”, poderá começar a pensar que a Tradição, Família e Propriedade (TFP) e Opus Dei são organizações de extrema esquerda.
A versão masculina da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves
Na década de 1930, um norueguês chamado Abraham Vereide visitou os Estados Unidos, onde organizou uma “reunião de oração no café da manhã” entre 19 líderes empresariais anônimos que queriam manter o dinheiro ocidental em bolsos privados enquanto os mercados mundiais aumentavam.
Morando em Seattle, Vereide passou a acreditar que a organização sindical na cidade tinha inspiração comunista. Jesus apareceu para ele na forma do presidente da U.S. Steel, que lhe disse para reunir “homens-chave” – empresários proeminentes e líderes políticos – para derrotar os sindicatos em seu nome.
Os esforços de recrutamento de Vereide se espalharam para o leste e, em 1941, ele chegou a Washington, onde começou a cultivar amizades com pessoas poderosas e a criar grupos de oração. A essa altura, Vereide estava convencido de que o cristianismo convencional tinha as coisas ao contrário: em vez de ministrar aos pobres, Jesus queria que os fiéis cuidassem dos “altos e baixos” – membros das elites dos Estados Unidos e do resto do mundo que careciam de intimidade com Jesus.
Na visão de mundo de Vereide, o capitalismo de livre mercado é divinamente ordenado, e sindicatos e regulamentos são uma forma de blasfêmia.
Quando Vereide morreu em 1969, a liderança do clube secreto passou para a lendária figura evangélica Douglas Coe (que morreu há quatro anos – o grupo agora não tem um líder oficial, mas muitas células espalhadas no mundo inteiro).
A pequena reunião de Vereide transformou-se no “National Prayer Breakfast”, o evento anual da capita norte-americana com a presença de centenas de políticos de todas as tendências ideológicas – incluindo, desde 1953, cada presidente em exercício dos Estados Unidos.
A maioria dos membros dos parlamentares acreditam que o evento é organizado pelo próprio Congresso.
“Quanto mais invisível você pode tornar sua organização”, disse Coe certa vez, “mais influência ela terá”. A “Família” é modelada no próprio perfil de Coe: ele era profundamente piedoso, extremamente reservado e influente além da crença.
No território brasileiro, de acordo com a Quantum American Society, há centenas de organizações religiosas estrangeiras que vêm atuando na periferia das grandes cidades desde os anos 50. Segundo a entidade, não é por acaso que há uma onda evangélica na política brasileira.
Por exemplo, o próprio presidente Jimmy Carter cita como Coe foi útil durante os “Acordos de Camp David” de 1978, ajudando a negociar o acordo de paz entre o Egito e Israel a portas fechadas.
Presidente George H.W. Bush falou diretamente com Coe durante o discurso do “National Prayer Breakfast” em 1990 para elogiá-lo por sua diplomacia silenciosa – leia-se diplomacia secreta.
Coe e seus emissários congressistas viajaram ao redor do mundo para orar em particular com líderes, incluindo homens como o ditador líbio Muammar Gaddafi, para construir canais diplomáticos de retaguarda.
Como Coe ganhou a confiança de tantos políticos, democratas, republicanos e ditadores? Ele se reunia com as pessoas individualmente, olhava nos olhos delas e dizia-lhes que acreditassem em Jesus e em nada mais. Ele chamou a doutrina de “Jesus mais nada” e a estratégia parece ter se baseado no enorme carisma de Coe.
O ex-líder da organização secreta nunca foi eleito para qualquer cargo público em sua vida, ao invés disso, construiu uma rede de lealdade religiosa que sempre pretendeu funcionar como uma alternativa de sala fechada para o processo democrático.
Coe, o suposto líder da “Família”, há muito expressava admiração pelas maneiras como os líderes geravam lealdade por meio da fraternidade, citando Hitler, Mao e a Máfia como inspiração.
Na teologia excêntrica da “Família”, o mundo é governado por “homens-chave” que foram escolhidos por Deus para governar o resto de nós, em imitação de Jesus, que eles acreditam ter sido um líder musculoso interessado apenas no poder.
Essa equação de poder divino e político vai contra o princípio de separação entre Igreja e Estado, e propõe uma visão elitista e até totalitária da política.
Coe está morto há alguns anos, mas suas obras vivem. A “Família” cultivou um relacionamento íntimo entre o movimento evangélico e Donald Trump, ajudando os cristãos a aceitá-lo como o “vaso imperfeito” para a vontade de Jesus. O enredo é o mesmo no Brasil.
O perdão, em certo sentido, é o coração da “religião” da “Família”. Todos os pecados podem ser esquecidos, eles argumentam, porque Jesus ama qualquer homem caído que retribui o amor de Jesus. E se um homem foi escolhido por Deus, quem são as pessoas para contradizê-lo?
É uma teoria de “alguns são mais iguais que outros” que se adequa à agenda evangélica: em Bolsonaro, eles encontraram um “homem-chave”, na frase de Vereide, que poderia canalizar a visão muscular da vontade de Cristo favorecida por aqueles que valorizam o cristianismo onipresença mais do que qualquer outra política. Jesus não é o ponto – o poder é.
Dentro dos corredores da “Família” há tanta informação, com ramificações de tão longo alcance e terríveis, que é difícil para o qualquer sair com a mente clara.
Até que ponto o grupo influencia os democratas e os republicanos, por exemplo, é incerto – Hillary Clinton era amiga de Coe, mas não sabemos muito além disso.
Depois de ganhar o coração de uma pessoa, é fácil apelar para a cabeça.
Trump e Bolsonaro não soam como ditadores por acidente. Eles falam assim porque homens como Douglas Coe idolatravam governantes fascistas de meados do século XX e espalhavam seu apelo.
O “pacto” oferecido pelo fundamentalismo cristão é popular por causa, não apesar de, sua semelhança com a irmandade nazista, e foi planejado com o propósito de ser seu equivalente.
A “Família” não teve influência na cruzada anticomunista do almirante Carlos Penna Botto. O oficial, que faleceu aos 80 anos no dia 27 de janeiro de 1973, foi um dos mais brilhantes oficiais de sua geração. Viveu sucessivamente as experiências simples do militar que não se envolve na política, cometeu as ingenuidades do almirante que se envolve com políticos e acabou encastelando-se num agressivo melancolicamente inocente anticomunismo.
Durante toda a sua carreira, Penna Botto nunca praticou o menor gesto pessoal que justificasse a acusação de oportunismo que lhe era atirada pelos inimigos comunistas. Mesmo comparado com o senador Joseph McCarthy, patrono do irracionalismo anticomunista na década de 50 nos Estados Unidos, Penna Botto resulta numa edição menos eficaz e eficiente, porém muito mais pura e honesta.
Nos anos 70, os Brazilianists acreditavam que os militares ficariam no poder até o ano 2000. Erraram. Nos dias de hoje, membros da “Família” apostam que Bolsonaro e seus seguidores se perpetuarão nos Três Poderes.
As reuniões podem ser secretas e a diplomacia pode ser subterrânea, mas os danos maléficos desse tipo de cristianismo é para sempre.