Cena: Palácio Presidencial, coletiva de imprensa; jornalistas aglomerados no saguão da sala de imprensa, aguardando o pronunciamento oficial do porta-voz do governo de um país imaginário.
Enquanto aguardam ansiosamente a coletiva, os participantes conversam, tecem comentários, comentam boatos e especulam:
– Vejam só. Dizem que o governo vai enfrentar o vírus.
– Finalmente. Demorou.
– Sim, um escândalo. Estamos atrasados. Outros países estão na dianteira.
– Estamos ficando para trás. E o número de doentes aumenta a cada dia. Segunda onda.
– Qual será a estratégia?
– Qual será a vacina a ser adotada?
– De onde virá? E as seringas? Quando serão compradas?
Finalmente o porta-voz aparece. Rosto sorridente, ar triunfal. Flashes espocando para todo lado. Ele pede silêncio e anuncia:
– É com enorme satisfação que venho hoje anunciar o plano elaborado pelo governo para o enfrentamento dessa pandemia. Ainda que ela não tenha a envergadura que alguns por aí insistam em afirmar, resolvemos acabar de vez com esse probleminha através de uma ação muito bem planejada e articulada.
Respiração suspensa de todos os presentes.
– Para enfrentar a pandemia, resolvemos criar a alíquota zero para a importação de armas!!!! – disse o porta-voz, triunfante.
Silêncio absoluto na plateia.
Alguém finalmente rompe o silêncio e ousa perguntar:
– E o que isso tem a ver com a pandemia??
O porta-voz sorri de forma condescendente, com um ar de quem já esperava a pergunta, e responde:
– Tudo a ver.
O repórter insiste:
– Desculpe-me, mas não consigo alcançar seu pensamento. Explique-se melhor, por gentileza.
– Elementar, meu caro. Vamos enfrentar o vírus à bala.
– À bala???? – perguntam todos, em uníssono.
– Isso mesmo. Acompanhem meu raciocínio. Com as alíquotas baixas, muitos brasileiros poderão comprar a sua própria arma. E assim, quando forem atacados pelo vírus, poderão agir em legítima defesa, atirando no vírus meliante. Vocês agora finalmente compreenderão a visão de futuro do governo ao escolher um militar para assumir o Ministério da Saúde. Uma questão de estratégia.
Ar de estupefação geral na plateia.
O porta-voz prossegue:
– Será uma ação coordenada com a participação das equipes econômica, relações exteriores, trabalho e educação. E liderada pela ala militar.
O ar de incredulidade segue intacto e o porta-voz aproveita:
– Passarei agora ao detalhamento do plano de implementação, traçando as diretrizes, a organização e o cronograma da distribuição das armas. Num primeiro momento, o governo fará a distribuição das armas que serão destinadas aos idosos e aos profissionais de saúde. Serão as armas mais poderosas, para enfrentar os casos mais graves da pandemia.
– Após, gradativamente, a partir da gravidade dos sintomas, o governo disponibilizará a compra de armas de médio e pequeno calibre, para os casos de média ou pouca gravidade, respectivamente – prossegue o porta-voz. Um pequeno tiro para pequenas infecções, é o lema. Nada de desperdícios ou exageros.
Alguém faz a pergunta indispensável.
– Mas e se o tiro não acertar o alvo? Alguém poderá se machucar…
Responde o porta-voz:
– Danos colaterais sempre acontecem. Temos que lidar com isso. É a vida…
– E o caso dos indígenas e população carcerária? – pergunta outro.
– Quem??? – pergunta o porta-voz, com ar enfastiado. Ahh, sim. Para esses aí disponibilizaremos espingardas. Nesses casos, danos colaterais serão bem-vindos. Resolveríamos vários problemas concomitantemente: superlotação dos presídios, liberação de áreas para exploração de madeiras, pastagens, minério, etc.
Mais um repórter se pronuncia:
– E qual seria a justificativa científica para supor que projéteis seriam capazes de eliminar o vírus? Nunca se ouviu falar nisso. O que diz a comunidade científica?
– Deixemos a comunidade científica de lado – pondera o porta-voz. Eles complicam demais. Vocês vivem obcecados com essa ideia da necessidade de provas para tudo! Que coisa!!! Temos plena convicção do sucesso de nosso plano. É o suficiente. Vocês precisam ajudar, colaborar, compreender a sua genialidade, o seu alcance: nosso plano estratégico nos aproximará de nações amigas, que nos venderão as armas, melhorando significativamente a nossa política externa; repercutirá igualmente no plano interno, estimulando o comércio, tão abalado nessa pandemia; restabelecerá o prestigio das Forças Armadas; resolverá o problema da demarcação das terras indígenas, como já disse antes; revolucionará a educação, tudo de uma tacada só.
– E qual seria o caráter educacional do plano? – pergunta um dos profissionais.
– Vocês não percebem? A quantidade de escolas de tiro que serão abertas, formação de professores, qualificação profissional, mais empregos. E o melhor: tudo sem ideologia ou partido.
– E a questão do trabalho? Onde entra? – pergunta outro repórter.
– Boa pergunta – responde o porta-voz. Além dos professores qualificados, acima mencionados, abriremos ainda muitas vagas aos profissionais autônomos de entregas. Precisaremos de muitos deles para a realização da entrega das armas. Ninguém precisará se expor. Receberá a mercadoria em seu próprio domicílio. Ah, quase ia me esquecendo. Os compradores receberão também um brinde comemorativo a cada compra.
– Brinde???
– Sim. Uma caixa de cloroquina estocada. Para as crianças, teremos duas opções: os meninos receberão uma miniatura da caixinha envidraçada com o traje de posse do príncipe e as meninas, o lindo traje cor-de-rosa da princesa. Uma espécie de McLanche feliz. Vai bombar, não acham? E a indústria de brinquedos, então…
Um dos repórteres gritou:
– Dá pra fazer a princesa com traje lilás ou rosa pink? Minha filha vai amar!
– Faremos em todas as cores, exceto no vermelho, naturalmente.
Finalmente um repórter indignado vociferou:
– Mas isso é um completo absurdo! Quem acreditará numa loucura dessas? Quem, em sã consciência, acreditará que um vírus pode ser eliminado por uma arma de fogo?
O porta-voz não se alterou. Respondeu, muito seguramente:
– A maioria vai acreditar, tenho certeza. Sempre acredita. Não acreditaram quando disseram que retirando a Presidenta tudo estaria resolvido?