Parece cada vez mais certo que no dia 20 de janeiro de 2021, por volta do meio-dia (14h em Brasília-DF), Joe Biden tomará posse como quadragésimo sexto presidente dos Estados Unidos, e Donald Trump perderá tanto seu emprego quanto uma de suas vantagens mais importantes: imunidade presidencial e salvo conduto para trafegar no mundo da ilegalidade.
O republicano enfrentou investigações envolvendo sua campanha, seus negócios e seu comportamento pessoal desde que fez o juramento de posse há quatro anos. A posse do nove presidente muda todo o cenário do Clã Trump. Assim que ele se tornar um cidadão privado, no entanto, ele será despojado da armadura legal que o protegeu de uma série de processos judiciais pendentes, tanto civis quanto criminais.
Os seus advogados não serão mais capazes de argumentar no tribunal que a posição de Trump como chefe executivo da nação o torna imune à acusação ou o resguarda de entregar documentos e outras provas. Ele também perderá a ajuda do Departamento de Justiça para fazer esses argumentos. Pela primeira vez na história americana, um presidente usou o Departamento de Justiça para proteger os seus interesses pessoais, além dos negócios criminosos de amigos e familiares que operam no mundo da clandestinidade.
Embora seja possível que ele possa ir para a prisão como resultado de algumas investigações de seus negócios, o futuro ex-presidente é mais provável que enfrente punição financeira sob a forma de multas civis, acreditam os analistas jurídicos na capital americana. O presidente eleito Joe Biden vem pregando a unidade e pede aos procuradores que esqueçam os crimes cometidos pelo seu rival. “O país está muito divido e uma condenação de Trump poderá atear mais querosene nessa fogueira. É hora se seguir em frente, unidos pelo país”, pede o democrata eleito.
O republicano também poderá ficar envergonhado e desmoralizado por segredos financeiros e atividades ilegais que serão expostos nos tribunais do estado de Nova York e Manhattan. Quase todos os seus problemas legais estão em sua cidade natal, Nova York, onde uma vez ele se criou nos holofotes dos tabloides como um jovem magnata e onde ele montou uma escada rolante de ouro em uma improvável carreira política. Alguns analistas políticos afirmam que isso se chama “karma”.
De uma hora para outra, o mundo descobrirá que o presidente norte-americano não passa de uma fraude.
Aqui estão alguns dos casos mais perigosos e delicados que aguardam o republicano quando ele deixar a Casa Branca – e aqui está como ele ainda poderia usar os poderes do mais alto cargo da nação para escapar da punição:
O caso do promotor de Manhattan
O ex-advogado de Trump Michael Cohen se declarou culpado em 2018 por violações de financiamento de campanha por pagar a estrela pornô Stormy Daniels para ficar em silêncio sobre seu suposto caso com Trump. A acusação alegava que Cohen pagou US$ 130.000 (cerca de R$ 710 mil) a artista antes da eleição de 2016 em benefício do “Indivíduo-1”, um co-conspirador não indiciado descrito como um “candidato a presidente em última instância”. Mas os promotores federais do Distrito Sul de Nova York não buscaram acusações contra Trump, que estaria imune à acusação, independentemente do presidente.
Dois promotores da cidade de Nova York começaram a trabalhar no ponto onde os promotores federais pararam ao examinar as finanças de Trump.
O promotor do distrito de Manhattan, Cy Vance (filho do ex-secretário de estado norte-americano Cyrus Roberts Vance) , está investigando uma variedade de hipotéticas impropriedades financeiras. Documentos do tribunal mostram que a promotoria está investigando “condutas criminosas possivelmente extensas e prolongadas na Organização Trump”, os negócios da família do presidente, que podem incluir falsificação de registros de negócios, fraude de seguros e fraude fiscal.
Embora a violação do financiamento de campanha do “Indivíduo-1” não seja um caso federal, a lei estadual de Nova York diz que falsificar registros de negócios em prol de um ato ilegal é um ato criminal. Cohen também denunciou que Trump efetivamente usa dois conjuntos de números em seus negócios, um com valores mais altos para garantir empréstimos, e um segundo com valores mais baixos para minimizar impostos, acordo com seu testemunho no Congresso e entrevistas publicadas. Embora Trump tenha se recusado a liberar suas declarações de imposto de renda, dizendo que está sob auditoria, o jornal The New York Times obteve muitos anos de declarações de imposto de renda, e determinou que ele não havia pago nenhum imposto por 10 anos e 750 dólares ( cerca de R$ 4 mil ) em cada um dos dois outros anos.
O escritório de Vance requisitou oito anos dos documentos fiscais do presidente de seu contador, Mazars USA LLC, uma intimação que o presidente lutou até a mais alta corte do país. Para a surpresa geral da nação, a Suprema Corte decidiu em outubro do ano passado que Trump não está imune a ter que fornecer esses documentos enquanto presidente e só poderá lutar contra a intimação com os mesmos motivos que qualquer outra pessoa poderia, no mérito.
Desde essa decisão, a equipe jurídica do presidente lutou contra a intimação em seu mérito, mas perdeu nos tribunais distritais e de apelação. O advogados do republicano esperam outra decisão da Justiça a Suprema Corte deve agora decidir se aceita o pedido de emergência do presidente para a suspensão das decisões dos tribunais inferiores e possivelmente ouvir o caso novamente, ou negar que fique. Não se sabe quando a Suprema Corte anunciará uma decisão. Não podemos esquecer que a corte agora abriga três juízes indicados e controlados por Trump.
Se o pedido de suspensão for negado, Vance recebe os documentos assim que Mazars puder transferir os arquivos. Esta é a única investigação criminal conhecida envolvendo Trump, e se condenados as penas podem ser únicas ou em grande parte financeiras.
Analistas jurídicos concordam em um ponto: Vance provavelmente escolherá “a menor fruta pendurada” na árvore dos crimes do Clã Trump – provavelmente será sonegação de impostos ou falsificação de registros de negócios. A pena por falsificar registros comerciais pode ser de até um ano de prisão com multas ou liberdade condicional com multas.
Qualquer cidadão pode ser considerado culpado de falsificar registros de negócios em segundo grau em Nova York quando ele tem a intenção específica de fraudar. Isso significa que ele pretende enganar ou privar outra pessoa de propriedade ou uma coisa de valor.
Um empregado subalterno poderá alegar que ele não se beneficiou pessoalmente do crime ou apenas executou ordens em nome de alguém. Essa defesa afirmativa provavelmente não se aplicará a Trump.
O caso do procuradora-geral de Nova York
O escritório da procuradora-geral de Nova York Letitia James, enquanto isso, está investigando quatro diferentes projetos imobiliários da Organização Trump e a tentativa fracassada de comprar o time Buffalo Bills, participante do Campeonato de Futebol dos EUA. Em março de 2019, o escritório intimou registros do Deutsche Bank e do Investors Bank. A investigação de fraude teria sido solicitada pelo testemunho de Cohen perante o Congresso de que ele havia inflado seus ativos financeiros.
A investigação da procuradora-geral é civil, não criminal, mas o escritório poderia encaminhar qualquer elemento supostamente criminoso para promotores locais como Vance.
As propriedades de Trump que o escritório de Letitia está investigando, de acordo com os arquivos judiciais, incluem a Seven Springs Estate, uma propriedade de 212 acres ao norte da cidade de Nova York que a empresa está buscando desenvolver; 40 Wall Street, um edifício fortemente alavancado de propriedade da empresa em Lower Manhattan; Trump International Hotel e Tower Chicago; e Trump National Golf Club Los Angeles.
O presidente vem alegando que Vance e Letitia têm uma agenda política com esses processos. “A minha única culpa é ser um grande homem de sucesso em todas as áreas, além da minha energia e beleza”, desabafa Trump
As mulheres
Várias mulheres acusaram o presidente de comportamento sexual inadequado em supostos incidentes que aconteceram nos anos setenta. O republicano nega as alegações. Algumas das mulheres tomaram medidas legais, e no caso com as implicações potenciais mais graves, Trump, ilegalmente, usou o Departamento de Justiça como seu advogado para evitar a apresentação de provas.
A colunista sentimental E. Jean Carroll alegou em um livro de 2019 que Trump a estuprou em um camarim de uma loja de departamentos há vinte anos. O presidente nega a acusação. “Ela não é o meu tipo, e esse processo todo é para estimular a publicidade de seu livro de pura ficção”. E. Jean está processando o presidente, alegando difamação e estupro.
O Departamento de Justiça mudou o status do processo de estadual para federal, e apresentou uma moção para agir como advogado de defesa do presidente. Um juiz negou a moção do Departamento de Justiça no final de outubro. Como cidadão privado e réu em uma ação civil, Trump pode agora ser obrigado a fornecer provas no caso — o que significa testemunho e, potencialmente, uma amostra do seu DNA.
O presidente é conhecido por misturar negócios com prazer. Summer Zervos, ex-participante do show The Apprentice, também entrou com uma ação de difamação contra Trump por negar suas acusações de agressão sexual. Em um processo aberto há três anos, ela afirmou que ele agarrou os seus seios e a beijou sem permissão. Trump concordou em testemunhar, mas seus advogados puderam adiar esse depoimento enquanto aguardava uma decisão do Tribunal de Apelações do Estado de Nova York que deve acontecer no próximo ano. Segundo o republicano, “ela está sonhando e delirando. Isso nunca aconteceu”.
Trump poderia perdoar a si mesmo antes de 20 de janeiro?
Especialistas jurídicos afirmam que o presidente poderá se perdoar antes de deixar o cargo, mas é improvável que tal ação sobreviva a um desafio no tribunal.
O Departamento de Justiça abordou esta questão em 5 de agosto de 1974 – quatro dias antes de Richard Nixon renunciar à presidência.
Em um memorando escrito por um procurador-geral interino, o Departamento de Justiça determinou que “sob a regra fundamental de que ninguém pode ser juiz em seu próprio caso, o Presidente não pode perdoar a si mesmo”.
Há uma ansiedade na área jurídica dos Estados Unidos, pois a opinião do Departamento de Justiça nunca foi testada no tribunal. Depois de suceder a Nixon como presidente, Gerald Ford deu-lhe um “perdão total, livre e absoluto” por quaisquer crimes que ele possa ter cometido.
O memorando de 1974 estabelece um cenário para um autoperdão que especialistas descreveram como improvável e digno de Hollywood. Diz o memorando: “Se sob a Vigésima Quinta Emenda o presidente declara que está temporariamente incapaz de desempenhar as funções do cargo, o vice-presidente se tornará presidente interino e, como tal, poderá perdoar o presidente.
“Depois disso, o presidente poderia renunciar ou retomar as funções de seu cargo.”
Qualquer perdão presidencial, seja concedido pelo presidente interino Mike Pence ou pelo próprio Trump, cobrirá apenas crimes federais, o que não ajudará o republicano em seus processos no estado de Nova York.