É quase impossível achar hoje alguém com menos de 60 anos que ainda consulte um dicionário de papel, aqueles cartapácios pesados, com 1.500 páginas de papel bíblia e capa dura. O caminho mais comum e prático para descobrir o significado de uma palavra é o Google ou um dos dicionários online disponíveis na internet.
Mas quem tem mais de 60 anos certamente precisou se valer do “Aurélio”, sinônimo de dicionário, o conhecido “Pai dos Burros”, com suas 1.499 páginas na primeira edição, lançada em julho de 1975. E as pessoas que usavam o dicionário de papel não sabiam exatamente como tudo aquilo havia sido feito. Para elas, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira era um pesquisador sisudo, um velhote que trabalhava enfurnado em um gabinete cheio de livros, poeirento, e que não precisava de ajuda, que sabia tudo. Errado.
O “Aurélio” levou mais de 10 anos sendo construído, com ajuda de uma equipe recrutada pelo jornalista Joaquim Campelo, que durante todo o tempo correu como um louco atrás de uma editora que comprasse a briga, ou de um patrocinador que bancasse o projeto. Prazos foram descumpridos, contratos foram quebrados, até que surgiu a Editora Nova Fronteira, do ex-governador Carlos Lacerda. A partir de 1982, começaram as brigas e disputas judiciais. Campelo e Aurélio romperam uma longa amizade, e as pendengas acabaram apenas em 2013 no Supremo Tribunal Federal, com um voto da ministra Rosa Weber.
A história do Dicionário Aurélio é contada pelo jornalista Cezar Motta no livro “Por Trás das Palavras”, editado pela Máquina de Livros, à venda em redes de livrarias ou pelos sites da Amazon e da editora, em papel e em e-book.
Convencendo Lacerda
Carlos Lacerda temeu que o dicionário quebrasse a editora. Era tudo muito caro e de difícil execução. Mas o “Aurélio” se tornou o maior êxito editorial do Brasil até hoje. Nem Jorge Amado vendeu tanto. O excerto abaixo conta o medo de Lacerda depois de visitar a redação em que o dicionário era elaborado e de sua conversa com seu principal executivo de sua editora, Roberto Riet. Outros aliados surgiram então:
“O empurrão decisivo em Carlos Lacerda veio do amigo comum (com Aurélio) João Condé, jornalista, escritor e colecionador. Condé, pernambucano de Caruaru, era o autor de “Arquivos Implacáveis”, uma coleção de manuscritos, originais, cartas, fotos, desenhos e outras preciosidades que ganhava ou furtava dos amigos escritores e artistas em geral.
“Os “Arquivos Implacáveis” foram publicados por mais de 20 anos no jornal “A Manhã” e na revista “O Cruzeiro”. Ele possuía, por exemplo, os originais manuscritos de livros de José Lins do Rego, poemas de Carlos Drummond de Andrade, confidências e informações íntimas, como a de que Érico Veríssimo tinha 1m71 de altura, calçava 38 e usava colarinho 38. Sobre Condé, escreveu o amigo Drummond, ao batizar os “Arquivos”: “Se um dia eu rasgasse meus versos, por desencanto ou nojo da poesia, não estaria certo de sua extinção. Restariam os arquivos implacáveis de João Condé”. Condé convenceu Carlos Lacerda de que a Editora Nova Fronteira daria um passo histórico com a publicação do Dicionário Aurélio. Acertara.
“Empolgado, Roberto Riet marcou um almoço com Jânio de Freitas, em quem confiava plenamente, para se aconselhar sobre o projeto. Foi uma reunião longa. Fumaram bastante e beberam quase uma garrafa inteira de poire, a aguardente de pera francesa, enquanto Riet perguntava e Jânio fazia contas sobre as chances do dicionário no mercado e os custos da produção: papel, tinta, fotolito, capa dura. Concluíram, otimistas, que era tudo viável.
“As conversas prosseguiram. Riet apresentou ao patrão os números e projeções de que dispunha, e Lacerda já estava mais do que convencido. Permitiu que Riet assinasse, em nome da Nova Fronteira, um contrato com Aurélio Buarque de Holanda. Joaquim Campelo, Elza Tavares, Margarida dos Anjos e Marina Baird assinaram como intervenientes.
“O contrato foi firmado no dia 17 de abril de 1974. Pelo acordo, Aurélio se comprometia a entregar o dicionário pronto à gráfica em seis meses – era um prazo razoável para Campelo e as moças, porque estava quase tudo pronto. O único a receber um adiantamento seria Aurélio; os outros teriam um percentual das vendas. A divisão seria assim: os royalties para os autores seriam de 10% das vendas, inicialmente, e depois 12%, quando aumentasse a tiragem. Aurélio teria 7% e os outros dividiriam os 3% restantes. Quando passassem a 12%, Aurélio teria mais 1,25%, e os outros, mais 0,75%.”