Fila no Brasil já se sabe. Ou é de funcionário público sofrido atrás de receber seus direitos prometidos pelo INSS; da espera do povo pelo ônibus que nunca chega, ou vem lotado e não para; ou de otimistas para jogar na Mega Sena. Sempre longas filas, dada a esperança dos brasileiros de se livrar da pobreza eterna ganhando milhões da chamada Loteca. Todavia semanas se passam sem que nenhum número seja sorteado. Ninguém ganha nada. E ainda perdem o dinheiro arriscado na sorte e os trocados guardados para o feijão. Quem ganha, mesmo, é a Caixa Econômica.
A Caixa tem um departamento destinado à criação de novos sorteios. No início era só a Mega Sena do futebol, mas não estava dando para cobrir os gastos. Seguiram-se dezenas de novas atrações – Quina, Timemania, Dupla Sena, Lotomania, Lotofácil e outras – aumentando a esperança e a frustração dos apostadores. Ninguém desiste. Falta começar a operar uma nova atração, a Lotofu, em homenagem aos heroicos brasileiros (as) que não desistem nunca. E ficará bem mais acessível, para atrair novos clientes: cada jogo da Lotofu vai custar R$ 1,00 a ser pago em duas vezes. A aposta será ainda válida por 4 semanas. A Caixa acha que vai dar certíssimo. Vou aplicar o dinheiro do acarajé, disse o baiano. Vou investir o preço do chimarrão, berrou o gaúcho. Vou guardar meu dinheirinho, avisou o mineiro.
A loteria é um sistema de ganho eventual, pouco frequente, através de sorteio popular, criado pelos governantes e destinada a arrecadar uma boa soma de dinheiro para o Estado. Sem que a população perceba que está sendo explorada, através de sorteios de custos baixos para que muitos e muitos participem. Ao mesmo tempo, proporcionando a oportunidade de se tornarem milionários, ou simplesmente ganharem uma boa grana. Essa iniciativa tem sido rendosa para todos os governos, de todo o mundo, e vem dos primórdios da humanidade. Os egípcios conseguiram pagar as suas pirâmides, à época, sorteando 1,3 milhões de camelos, a cinco dinares o bilhete, segundo historiadores. Ainda havia de prêmio um sarcófago construído para durar mil anos, a depender do peso da múmia. Nesse caso os bilhetes eram bem mais caros.
E assim a ideia prevaleceu através dos séculos, enriquecendo governos e governantes de todas as regiões, e algumas dezenas, quiçá centenas de vencedores que compravam os bilhetes. Na Roma antiga, um dos prêmios era a pós-graduação no curso de gladiador e cadeira cativa por 2 anos para assistir espetáculos sangrentos no Coliseu. Na França de Napoleão o prêmio maior nos sorteios lotéricos era ficar livre de ser convocado para as guerras de conquista do imperador. Os que não ganhavam o sorteio eram convocados, de acordo com a idade. Assim se formaram as famosas hordas napoleônicas, que ganharam todas as batalhas, até Waterloo.
No Brasil colonial, os que ganharam sorteios durante o Império foram muitos, mas poucos receberam. Isso porque, entre nós, desde aquela época existia o vergonhoso hábito do roubo e da enganação. Assim como, atualmente, no desvio do dinheiro da compra de remédios e equipamentos para debelar a coronavírus que foram parar nos bolsos das autoridades, que deveriam protege-lo.
Na atualidade, a loteria que não dá está começando a provocar um problema social, e uma mini-revolta. O pessoal que nunca ganha chega a 97,6% dos jogadores, e os sorteios sem sorteados chegam a 87.25%, segundo o IBGE. Dona Lucinda, 76 aninhos bem vividos é conhecida na quadra pela elegância, decisão e o eterno guarda-chuva – “aqui é chuva demais ou sol demais “. Ela entrou mais uma vez na casa lotérica e se dirigiu à atendente. Bateu palmas para chamar a atenção de todos. “Essa menina é testemunha. Já joguei aqui 13.427 vezes na Mega. No resto, mais barato, foram mais de 23 mil vezes. Nunca ganhei droga nenhuma. A partir de hoje não jogo mais nem que o prêmio chegue a um bilhão. Vocês deveriam fazer o mesmo. Isso é uma bandalheira dos governos”.
A atendente achou linda a revolta da respeitável senhora e deu-lhe um abraço. Outra chorou de solidariedade e admiração pela atitude de D. Lucinda. Havia pelo menos 50 pessoas na fila para fazerem seus jogos. Quando a valente Lucinda se preparava para sair, o pessoal da fila começou a bater palmas e foram todos atrás dela. O dono da loteria, que chegava do café e tinha a loja há 29 anos, teve uma crise de nervos. Comentou que talvez tenha jogado ainda mais do que a velha senhora, sem nunca ter ganho nada. Quando todos saíram, sem jogar, fechou a porta da loja e se mandou para o bar.
Assim os pobres e a população em geral perdem seu dinheiro, por não observarem alguns limites. Os ricos arriscam parte de sua fortuna em luxuosos cassinos, ganhando esporadicamente, perdendo muito mais, e se divertindo a valer. São escapes da sociedade onde a maioria das pessoas não consegue obter tudo o que deseja, ou satisfazer seu mínimo de ambição material e qualidade de vida. Quem sai lucrando são os donos das atrações -– loterias, sorteios, jogo do bicho, cassinos, rifas e outros -– enquanto os pobres, que são os mais necessitados, não desistem de tentar.
As entidades, empresas e governos que patrocinam os sorteios e loterias poderiam, ao menos, arranjar uma forma de socializar os prêmios e possibilitar que os milhões de reais possam ser distrbuídos ao maior número possível de ganhadores. Jamais a um só, em se tratando de grandes somas. Evitar, como na semana passada, que uma única pessoa receba R$ 75 milhões. Por duas razões, ao menos. O super-milionário vai perder seu equilíbrio mental; não saber quantas casas e limusines vai comprar; os filhos não vão mais querer estudar, e os ladrões de todo o país vão correr atrás dele. Com a sugerida divisão, muitas pessoas necessitadas poderiam obter apoio para sair da miséria.
Os que já quase não possuem nada, e passam realmente por dificuldades difíceis de superar, insistem nos sorteios, quase em desespero na expectativa de ganhar qualquer dinheiro que possa dar-lhe um mínimo de apoio para ele e sua família. Pega o dinheiro do leite, vai à loteria e paga uma Quina, que custa menos e paga muito. A Quina passa meses sem ter um número sorteado. Mas ninguém desiste de jogar, e tampouco deixa de ficar mais pobre. Os governos e os empresários do azar, enchendo seus cofres.
— José Fonseca Filho é jornalista