Uma Carta Viva de Direitos

Como começa a Constituição dos Estados Unidos

Para quem se interessa pelos direitos da cidadania, é impossível ignorar o significado das eleições norte-americanas. A vitória de Joe Biden sobre Donald Trump basta para convencer os céticos de que a democracia nos Estados Unidos tem a marca da autenticidade.

Há algum tempo interessei-me pelo livro A Constituição Norte-Americana é Democrática?, escrito pelo professor de ciências políticas Uma Carta Viva de Direitos(Ed. FGV, RJ, 2015). Escreveu o autor estar ciente de que “ao expressar reservas sobre a Constituição, como venho fazendo nestes ensaios, posso ser condenado por atirar pedras no ícone nacional. “Desde os tempos dos pais fundadores”, observou haver “uma aura sagrada em torno da Constituição, que é patente na retórica política comemorativa” (pág. 113).

Não se trata de mera retórica política, como sustenta o professor Dahal. A “aura sagrada em torno da Constituição” não surgiu do nada, mas de 233 anos de eficiência, liberdade e trabalho, que fizeram da pequena colônia inglesa o país mais poderoso e rico do mundo.

William O. Douglas

William O. Douglas, juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos durante 22 anos, escreveu pequeno livro que tem o título de Uma Carta Viva de Direitos, dedicado a estudantes do curso secundário. Em poucas páginas examina as garantias prescritas na Constituição: liberdade de expressão; liberdade de reunião ou associação; liberdade de religião e consciência e o direito à intimidade; programas de lealdade; investigação pelo legislativo; liberdade de não sujeição a tratamento discriminatório; autoridade civil; controle do aparato militar; direito das pessoas acusadas.

Assinala, porém, Willian Douglas: “O que a nossa Constituição afirma, o que os nossos legisladores fazem e o que nos nossos tribunais escrevem são vitalmente importantes. A liberdade real nas nossas vidas diárias é, porém, demonstrada pelas atitudes e diretrizes das pessoas, umas para com as outras, no próprio quarteirão ou no bairro em que vivemos. Aí encontraremos a verdadeira medida de Uma Carta Viva de Direitos”.

Foto Orlando Brito

O Brasil possui a terceira mais extensa constituição do mundo. Contém 250 artigos e 114 Disposições Constitucionais Transitórias. O artigo 5º, que trata Dos Direitos e Garantias Fundamentais, se desdobra em 78 incisos, alguns acompanhados por diversas alíneas, além de quatro parágrafos. Pelo estilo prolixo, confuso e ambíguo é ilegível, incompreensível e indefensável. Mesmo entre especialistas em direito constitucional é raro encontrar quem possa afirmar que a conhece, porque a todo momento é afrontada por decisões do Supremo e submetida a emendas, hoje em número superior a 100.

Se a Carta Viva de Direitos americana, aprovada com sete artigos em 17 de dezembro de 1787, emendada 20 vezes ao longo de 233 anos não é democrática, o que dizer da nossa oitava Lei Fundamental?

Não basta o documento com o título de Constituição. É necessário, como diria Oliveira Vianna, que não haja desacordo entre o idealismo daqueles que acreditam no poder mágico das palavras e a realidade nacional.

A Constituinte de 1986/1987 legislou para país inexistente. Daí as constantes afirmações de que, com a Constituição de 1988, se tornou ingovernável. Trata-se, como diria o autor de O idealismo da Constituição, de “um embuste formidável”, que acenou com condições de vida muito além do que a pobreza da economia poderia assegurar.

Donald Trump, derrotado

Para evoluir o Brasil necessita distinguir a realidade da fantasia e reescrever a Constituição. Reconhecer que somos pobres e subdesenvolvidos. Que não existem recursos para sustentar partidos políticos permeáveis à corrupção, nem dinheiro para bancar campanhas e horários de rádio e de televisão. O foro privilegiado deverá desaparecer, em nome da igualdade de todos perante a lei. A medida provisória banida do processo legislativo. Uma constituição deve ser curta, objetiva, enxuta, de fácil leitura pelo homem comum do povo. Para ser respeitada não oferecer mais do que aquilo que consegue proporcionar. Não é documento literário para ser admirado nas cátedras das faculdades, enquanto desserve às necessidades do povo.

A vitória da oposição nos Estados Unidos, sobre presidente da República prepotente, arrogante, autoritário, deve nos servir de estímulo e de lição.

— Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Ex-ministro do Trabalho. Foi presidente do Superior Tribunal do Trabalho.

 

Deixe seu comentário