Todos os países do mundo sofrem com a tragédia da Covid-19. Cada um com seus problemas, para usar do linguajar popular quando se deseja particularizar e amenizar situações de sofrimento. Em todos os continentes, o número de vítimas pelo surto mundial é grandioso. Já atingiu 50 milhões de casos, nas Américas, África, Ásia, Oceania, Europa e até na Antártida. No Brasil, o número de óbitos beira a 160 mil.
Mas botemos hoje foco sobre a França, país que sempre espelhou a liberdade.
Nesse momento, a pátria de Voltaire, Joana D’Arc, Victor Hugo, Napoleão, Edith Piaf, Yves Montand, Brigitte Bardot, De Gaulle e milhões e milhões de cidadãos vive duplo drama. Não bastassem os problemas com os efeitos da pandemia do Coronavírus, acrescentam-se agora atentados terroristas com feridos e mortos. Aliás, a brasileira Simone Barreto é uma das vítimas fatais.
Para enfrentar e conter a segunda onda da Covid, o presidente Emmanuel Macron, diante do volumoso aumento de novos casos de contaminação — em torno de 50 mil por dia — impôs a rigorosa medida do lockdown. Ou seja, o reconfinamento de mulheres, homens e crianças em todo território francês. Parecido com o que aconteceu no primeiro semestre, durante a primavera. Restaurantes de Paris praticamente sem clientes Passam a vigorar regras bastante rígidas para os ambientes de convívio coletivo.
Assim, bares, restaurantes, lojas do comércio de segunda necessidade, museus, cinemas e teatros passam a não funcionar até o dia primeiro de dezembro, quando o inverno começa a ficar intenso. Escolas, liceus, creches, fábricas, obras, farmácias, supermercados e, enfim, atividades consideradas essenciais, obedecerão a normas específicas e mais flexíveis. Porém, as pessoas que descumprirem aquelas normas do lockdown ficam sujeitas a multas que chegam a equivalentes 900 reais.
Até mesmo para saírem de casa, têm de preencher formulário justificando-se às autoridades. Em consequência, uma enormidade de residentes de Paris, busca momentos menos complicados na “Cidade-Luz”. Com a facilidade de usarem a Internet para o trabalho remoto, preferem fugir dos riscos de possíveis atentados e da atmosfera de pouco brilho que a capital francesa vive nesse momento. A alternativa é viajar para as cidades do interior. E para isso, entra em cena o automóvel e o grande movimento de veículos nas rodovias.
Impensável. De repente, a majestosa Paris tornou-se tenebrosa cidade.
O alarido de agora nas estradas da França, faz lembrar o imperdível conto A Auto-Estrada do Sul. O escritor Júlio Cortázar –nascido na Bélgica e com nacionalidade argentina– narra de maneira formidável o sofrimento de um casal que decide “fugir” da monotonia de seu apartamento em Paris, no fim de semana. E para curtir momentos de liberdade ao ar livre e distante da metrópole repleta de transeuntes, toma a rodovia que liga a capital francesa à tranquila cidade de Fontainebleu. No entanto, o que deveria ser um “paraíso” tornou-se um “purgatório”.
Na rodovia, um acidente gera um engarrafamento quilométrico e impõe ao casal outro surpreendente sofrimento. “Presos” no interior de seus carros porque o trânsito poderia voltar a fluir, todos os demais viajantes perdem a própria identidade e passam a referir-se uns aos outros não pelos nomes, mas sim aos modelos de seus veículos: a Loira do Renault Verde, o Homem do Mercedes Cinza, o Sujeito Circunspecto do Dauphine Antigo, os Jovens do Citroën Deux Chevaux, a Família do Furgão Branco… Por fim, após horas de desconforto e confinamento, o problema se desfaz.
E, assim como o “Engenheiro do Peugeot 404”, o casal e os demais companheiros de infortúnio a bordo de cada automóvel momentaneamente transformado em cárcere, começam a pôr-se em movimento. Felizes, seguem seu destino com a sensação de terem reconquistado a liberdade.
Evidentemente, os efeitos da pandemia de agora e o infortúnio do casal de parisienses de décadas atrás contado no livro de Cortázar são situações inteiramente diferentes. Primeiro, as mazelas do dia a dia da sociedade. Depois, os misteriosos desígnios que as forças do universo nos impõem agora com os males do Coronavírus. Contudo, ambas nos remetem aos dramas da humanidade, das cidades e da própria história do mundo.