A cena vem se repetindo com frequência: quando as equipes de TV filmam as agências do INSS fechadas, por causa da pandemia, invariavelmente os cinegrafistas colocam em foco caixotes postados à frente das entradas dos postos de serviço. Sem atendimento presencial, os usuários do instituto que não têm acesso à internet depositam nestas caixas seus requerimentos e documentos. E, então, só lhes resta aguardar uma resposta às suas solicitações de benefícios.
No caso das aposentadorias e pensões, os felizardos que acabam sendo notificados da decisão de concessão do benefício, por mais minguado que este possa ser, são logo assediados pelos serviços de telemarketing dos agentes financeiros a lhes oferecer as delícias de um cartão de crédito ou de uma consignação. Inexplicável que os bancos saibam quanto vai ganhar o felizardo, antes mesmo que estes tenham acesso à memória de cálculos do valor do benefício a que fazem jus? Nada é inexplicável quando os sucessivos governos se ajoelham ao Sistema Financeiro. Desde Lula foi-se aperfeiçoando o mecanismo de sufocar em dívidas os pobres aposentados. Principalmente depois de este expediente ter vindo à baila naquela história de “valerioduto”.
A Instrução Normativa INSS 28, de 16 de maio de 2008, consolidou critérios e procedimentos operacionais relativos à consignação de descontos para concessão de empréstimos, tendo por lastro os benefícios de aposentadoria e pensão. Tudo direitinho, tudo legal. Depois disso, veio uma miríade de instruções do INSS “aperfeiçoando a maneira de se fazer o convênio entre as entidades credenciadas para o consignado e o INSS”. Então, enquanto o benefício não vem, os mais incautos ou os que estão na tábua da beirada das necessidades e das contas sem pagar acabam sendo seduzidos pelo canto de sereia da servidão ao mundo das finanças. Dando como garantia seus futuros proventos, tornam-se vassalos de uma dívida pelos anos que lhes restam, anos que esperavam gozar com alguma tranquilidade. Ilustração patética desse drama foi exibida recentemente no “Fantástico”, em matéria destinada a mostrar como vivem os miseráveis neste País. De uma beneficiária entrevistada, ouviu-se que só lhe sobram, por mês, cerca de noventa reais de seus proventos. Tudo o mais é capturado pelo credor da consignação.
Mas como o INSS caminha, vento em popa, rumo à debacle atuarial, as autoridades tratam de em nada facilitar a concessão dos benefícios. Assim, atualmente, são centenas de milhares que ficam a esperar e mais esperar por um aceno positivo da autarquia. Certamente não aguardam a carta do INSS cantando, como o artista, que, em “Zazueira”, dizia que “feliz vai esperando”. Mas concordam com ele em que “a espera é difícil”, e que esperam sonhando…
Essa sequência remete-nos a um conto de Gabriel Garcia Márquez: “Ninguém escreve ao coronel”. Simplesmente hilário! O personagem principal, o coronel, um combatente de guerra civil na Colômbia, passa os seus dias de oficial reformado a aguardar a carta – que nunca chega – contendo a esperada informação de concessão de seus proventos de aposentadoria. Entrementes, o provecto e frustrado (porque cidadão comum) ex-militar, trata de cevar e treinar um galo de briga que lhe parece ser um promissor campeão das rinhas e que lhe proporcionará rendas, enquanto a aposentadoria não vem. O enredo se desenvolve em torno do destino do galináceo em questão. Para quem ainda não se deliciou com estas páginas, deixo de revelar o final para remeter o leitor a um saboroso entretenimento literário que só o mestre do realismo mágico pode nos proporcionar.
Voltemos ao paralelepípedo que funciona como receptáculo de requerimentos. Bem poderia ser chamado de Caixa de Pandora do INSS. Ao seu redor circulam os males que foram liberados por uma intencional política − entra governo, sai governo − de desmontar a seguridade social no Brasil como um todo e, especificamente, a previdência social. Soma-se a isto a incúria própria dos que desdenham o planejamento estratégico. Só assim pode-se explicar a total falta de preparo para lidar com situações nas quais pessoas de carne e osso devem, necessariamente, se apresentar a um servidor previdenciário, como agora, diante da covid-19, o caso das perícias médicas para fins de concessão ou término de benefícios.
A verdade é que o Congresso Nacional perdeu inúmeras oportunidades de fazer uma reengenharia no seguro social, tornando-o efetivamente universal, eficaz e financeiramente equilibrado. Os fundamentos deveriam ser claros: uma previdência pública unificada para todos, sem exceção, com um teto no valor dos proventos de aposentadoria e pensão; a isso, adicionar-se-ia uma previdência complementar, pública ou privada, de natureza facultativa. Todos os fundos sociais públicos e os chamados “fundos de pensão” de entidades estatais ou paraestatais seriam unificados de forma a dar-lhe estofo atuarial duradouro. A idade mínima para aquisição de benefício de aposentadoria poderia ser exigida, desde que, antes, fosse editada a lei complementar a que se refere o inciso I do art. 7º da Constituição Federal, que dispõe sobre a proteção contra a dispensa imotivada. Nada disso se cumpriu. Preferiu-se tomar a rota da barbárie.
Enquanto isso, milhares e mais milhares de brasileiros seguem depositando seus pedidos nos caixotes do INSS. Fazem-no como se pedissem aos santos algo difícil de ser alcançado. E fazem-no com convicção. É que, como se sabe, liberados todos os males quando a caixa foi aberta por Pandora, alguma coisa restou ali dentro, guardada para todo o sempre: a esperança.