Na última semana, o país viu a paralisação de caminhoneiros e seus reflexos no cotidiano: desabastecimento, encarecimento de produtos, falta de transporte para ir ao trabalho e até falta de gás de cozinha para preparar as refeições diárias. A greve dos caminhoneiros fez o Brasil, praticamente, parar. Porém, engana-se quem pensa que a paralisia geral foi causada pelo aumento dos combustíveis. Ela é reflexo da irresponsabilidade, compadrio e falta de planejamento que permeiam a história brasileira.
Na década de 50, o governo de Juscelino Kubitschek decidiu priorizar o desenvolvimento do modal rodoviário, em detrimento de ferrovias e hidrovias. A decisão servia como um incentivo para que a indústria automobilística pudesse se instalar no país. A construção de estradas e rodovias seguiu forte nas décadas seguintes, enquanto as ferrovias patinavam, haja vista a Ferrovia Transnordestina, que após 20 anos está com metade das obras concluídas e preços para execução aumentando cada vez mais. O resultado: mais de 60% do transporte de cargas no Brasil é realizado pelo modal rodoviário, principalmente através dos caminhões. Desta forma, o país se torna altamente dependente de um só modal, já que os outros não tem vazão suficiente para escoar os suprimentos.
A falta de investimentos em infraestrutura é uma tônica do país, vide o exemplo de que metade das casas, em pleno século XXI, não tem saneamento básico. E ela decorre, sobretudo, da pouca folga no orçamento público para investimentos, pois os governos gastam exacerbadamente em despesas correntes, tais como pagamentos previdenciários e salários ao funcionalismo. Além disso, pouco avançaram em concessões ou parcerias público-privadas, para alavancar investimentos nessas áreas. Aliás, a diretoria de agências reguladoras e estatais responsáveis por administrar portos, aeroportos e ferrovias costumam ser uma forte moeda de troca para a formação de coalizões políticas.
O problema que já era grande, agravou-se com as decisões tomadas na última década. Sob o governo Dilma, a União decidiu conceder vultuosos e generosos subsídios para amigos selecionados, via BNDES. De quebra, ainda concedeu desonerações amplas e irrestritas para diversos setores, sem metas ou acompanhamento de indicadores. Somou-se a outros regimes tributários diferenciados, como a Zona Franca de Manaus e o Simples Nacional, elevando o gasto público com subsídios (não para pobres). Não deu outra: crise fiscal grave, culminando numa recessão econômica, da qual ainda patinamos para sair.
Com uma realidade não muito diferente do governo federal, os estados também viram sua arrecadação despencar, sobretudo de sua principal fonte de arrecadação, o ICMS, enquanto os gastos (principalmente com servidores ativos e inativos) disparava. Por algum tempo, ainda foi possível recorrer a empréstimos do Tesouro Nacional para rolar dívidas. Ou, como por exemplo, no caso do Rio de Janeiro, antecipar receitas futuras com a exploração de royalties do petróleo para pagar despesas correntes, matando o futuro de gerações. Porém, a falência já é uma realidade para grande parte dos estados brasileiros, que mal conseguem custear suas operações básicas, chegando a atrasar o salário de servidores.
Para entrarmos na seara de combustíveis, é preciso recordar que a Petrobras tem o governo como acionista majoritário e controlador. Ela é responsável por quase 100% do refino de petróleo no país, e tem um “monopólio branco” na distribuição de combustíveis em território nacional. Ao longo primeiro mandato de Dilma, a estatal congelou o preço dos combustíveis, a mando do governo para auxiliar o combate à inflação, que já dava mostras de estar fora de controle. Com isso, viu seu endividamento líquido quase quintuplicar entre 2010 e 2014, passando de R$ 61 bilhões para R$ 282 bilhões. A situação se agravou ainda mais em 2015, pelos ajustes que a empresa teve de fazer em seu balanço patrimonial, devido às perdas reveladas pela Operação Lava-Jato.
Já em 2015, no novo mandato de Dilma Rousseff, a estatal iniciou uma estratégia de recuperação que envolvia aumento de combustíveis e venda de ativos, ou plano de desinvestimentos, como nomeou o então presidente, Aldemir Bendine, atualmente preso pela Operação Lava Jato. Após o impeachment da ex-presidente, já no governo temer e sob a guarda de Pedro Parente, a estatal adotou uma política de reajustes de preços quase diária, vinculada às oscilações do preço do petróleo no mercado internacional, além de dar prosseguimento ao plano de desinvestimentos.
Os seguidos reajustes para cima levaram os caminhoneiros à paralisação, pois não estavam conseguindo repassar esse custo adicional aos clientes, pelo excesso da oferta de fretes. Reivindicavam a redução do valor do Diesel, sem se importar em qual forma e quem pagaria pela diferença. E aí fechou-se a armadilha que o país construiu para si mesmo.
Na composição do preço do Diesel, a Petrobras tem margem de 55%, enquanto 16% (em média, pois varia de acordo com o estado) são relativos ao ICMS, outros 13% correspondem à CIDE e ao PIS/COFINS, ambos impostos federais. Outros 7% decorrem do custo do Biodiesel e 9% aos custos e lucros de distribuidores. A pressão inicial foi para que a Petrobras reduzisse sua margem e revisse sua política de reajustes. A reação do mercado foi imediata: apenas na quinta-feira, a empresa perdeu R$ 45 bilhões em valor de mercado. Os reajustes, além de colocar a empresa em boas práticas de governança, são essenciais para equilibrar o caixa, reduzir endividamento e recuperar a capacidade de investimentos da Petrobras. Ela não arcaria com a conta sozinha.
Logo, os olhares se voltaram ao seu acionista majoritário: o governo federal. Há quatro anos, a União apresenta déficits primários em seu orçamento, o que fez elevar o endividamento público e esmagar a margem de manobra de gastos e receitas no orçamento federal. Abrir mão da CIDE e/ou do PIS/COFINS sobre combustíveis seria um péssimo sinal para um governo em busca de reequilibrar suas contas. A solução, encontrada pela Câmara dos Deputados, foi aprovar uma reoneração reduzida da folha de pagamentos para alguns setores da indústria, para que o governo abrisse mão da CIDE. Foi além e decidiu também zerar o PIS/COFINS sobre combustíveis. O resultado seria uma renúncia fiscal de R$ 13 bilhões, quase 10% do déficit primário previsto para esse ano. A ideia morreu antes de chegar ao Senado.
Por fim, a atenção voltou-se para os estados e a possível redução na alíquota de ICMS sobre combustíveis. Porém, seria inviável, no momento em que a maioria deles está com gravíssima situação financeira, abdicar de parte relevante de sua principal receita. Logo, a batata quente voltou para as mãos do governo federal.
A solução encontrada foi salomônica. Para amenizar a crise, a Petrobras decidiu reduzir em 10% o valor do Diesel nas refinarias por 15 dias. Depois, ficou acertado que a redução valeria por 30 dias e a União pagaria à empresa as perdas de receita por conta da redução. Também ficou acordado que os reajustes no valor do Diesel seriam mensais, e não mais quase diários. Novamente, o governo federal arcaria com as perdas. Por fim, a União apoiaria a proposta de zerar a CIDE sobre combustíveis. O ministro da Fazenda, Eduardo Guardia, confirmou que o pacote custaria R$ 5 bilhões para a União, que deve retirar o montante de outras áreas do orçamento.
A tendência, daqui para a frente, é termos um orçamento federal cada vez mais escasso para atender às demandas, tanto da sociedade como um todo, como de interesses específicos. Isso se deve à falta de reformas estruturais, que estabeleceriam maior controle de despesas correntes, como Previdência e salários de servidores públicos, as quais já sofrem oposição de poderosas corporações, principalmente representantes de carreiras típicas de Estado.
O Brasil tornou-se refém dos caminhoneiros, não pelo aumento no Diesel, mas por uma estrutura construída através de décadas, desde a escolha dos canais logísticos do país até os anos de irresponsabilidade fiscal e má-gestão de empresas estatais. Assim como os caminhoneiros, outros grupos organizados pressionarão para que a pouca margem orçamentária seja usada para bancar seus próprios privilégios, opondo-se a reformas estruturais que garantiriam um governo de tamanho adequado para prover serviços públicos à população que mais necessita da ação do Estado e regras iguais demandas semelhantes.
Esta semana foram R$ 5 bilhões para garantir o Diesel mais barato, amanhã serão mais alguns bilhões para desonerar algum setor específico e depois outra dezena de bilhões para garantir o reajuste de servidores federais. E desta forma, o orçamento público vai se transformando em uma colcha de retalhos, na qual as entidades e corporações mais poderosas terão seus privilégios bancados pela massa de contribuintes.
*Victor Oliveira, mestrando em Instituições, Organizações e Trabalho (DEP-UFSCar). E-mail: ep.victor.oliveira@gmail.com