“Não posso deixar que Roraima vire um campo de concentração”.
Governadora Suely Campos, do PP, que quer barrar a entrada de venezuelanos em seu estado.
“Eles (migrantes venezuelanos) estão envolvidos nos mais diversos tipos de delitos. Entretanto, os que mais aparecem são o de tráfico de drogas, contrabando e descaminhos e os de prostituição”. Coronel Edison Prola, comandante-geral da PM de Roraima, chutando estatísticas
Khalil Gibran, um célebre escritor libanês, tinha uma frase definitiva sobre xenofobia: “Considero-me estrangeiro em qualquer país, alheio a qualquer raça. Pois a terra é minha pátria e a humanidade toda é meu povo”. Em Roraima, ex-território controlado hoje pelo feudo pepista de Blairo Maggi, Ivo Cassol, Paulo Maluf, Ana Amélia – aquela que confunde Al Jazeera com Estado Islâmico – e outros próceres, a polêmica do momento é a decisão da governadora Suely Campos, da mesma legenda, de pedir o fechamento da fronteira entre Brasil e Venezuela. A governadora ingressou com ação no Supremo para que o governo federal lacre a fronteira entre Brasil e Venezuela por conta do fluxo cada vez maior de migrantes que chegam ao país por seu estado. Muitos pedem refúgio, pois sentem que suas vidas estão ameaçadas na Venezuela e temem retornar ao seu país. Outros querem tentar uma vida melhor do outro lado da rua. Roraima, um estado que rejeita internamente sua própria população nativa, os índios, repete atitudes como de alguns governos europeus, que tentam impedir a entrada de migrantes, como da Síria, Somália e outros países falidos da África. Itália e Grécia estão resgatando e recebendo essas pessoas. Quem está fechando as fronteiras são os países de cima. No nosso caso, Roraima é o tal “país” de cima.
Mais do que um alarme social, o que acendeu o alerta no governo de Roraima foi um temor xenófobo, alimentado pelo governo local. Que não é privilégio da direita. Em 2014, o governo petista do Acre tentou barrar a entrada de haitianos que migravam via Brasiléia. Pior, virou espaço para exploração política. Adversário político de Suely Campos no estado, o senador Romero Jucá, do MDB, foi classificado por ela como “dificultador” de ações no estado. Jucá diz, com profundo pesar, lamentar que a governadora faça o que ele classificou como “ação eleitoreira” em torno da crise dos migrantes venezuelanos. No passado, como governador, Jucá – o senador do “Supremo, com tudo” – já defendeu o mesmo fechamento das fronteiras. Um dos porta-vozes da xenofobia local é o comandante da PM de Roraima, coronel Edison Prola, que associa os venezuelanos ao aumento de criminalidade, sem mostrar qualquer evidência confiável, como se o Estado fosse o paraíso da segurança pública. Usando a mídia local, ele tem aterrorizado a população com estatísticas alarmantes – como um suposto aumento em 192% ocorrências policiais envolvendo venezuelanos -, sem lastro estatístico.
Quem já esteve nas fronteiras de nosso país continente – e eu, modéstia à parte, viajei como repórter de Tabatinga (AM), fronteira com a Colômbia, até Ponta Porã (MS), limite com o Paraguai -, sabe que o Brasil é visto pelos vizinhos mais pobres como um Eldorado local, mesmo em época de crise, desemprego e recessão, como agora. Exceto por argentinos, uruguaios e chilenos (neste caso, país sem fronteira com o Brasil), que só fazem turismo por aqui, os demais países têm um histórico de migração cíclica pra cá. A novidade é a xenofobia de Suely, com a desculpa esfarrapada de que está preocupada com o caos social de um estado que já é um caos social. Um surto de sarampo, certamente uma novidade no Norte do país, tem sido a justificativa da governadora para propor a criação do que chama de “uma barreira sanitária” para garantir que, ao chegarem no Brasil, os venezuelanos fiquem em dia com as vacinas. Ou, de preferência, que nem entrem.
Equilibrando-se entre os interesses de Jucá e do aliado PP, Temer assinou uma Medida Provisória reconhecendo a situação de emergência nacional no estado. Também foram assinados dois decretos: um cria o comitê federal de assistência, para monitorar a situação; o outro reconhece a vulnerabilidade em Roraima por conta da intensa imigração de venezuelanos. Trinta homens da Força Nacional foram enviados “ajudar no controle da chegada de venezuelanos”. Não é pouca gente, de fato – o que não torna a migração um fato novo na história da humanidade, nem da formação do povo brasileiro. Em Boa Vista vivem 40 mil venezuelanos – mais de 10% da população da cidade. As Forças Armadas têm feito um trabalho relevante para impedir o caos. Migrantes que vivem na praça Simón Bolívar, em Boa Vista — uma das maiores da capital e com maior número de venezuelanos acampados —, têm recebido assistência. O Exército já abriu dois abrigos e disse que abrirá outros cinco. A ONU acompanha tudo de perto.
Neste momento, o governo federal tenta transferir mais de 1 mil venezuelanos que estão em Roraima para outros 13 estados brasileiros nas próximas semanas. O Ministério do Desenvolvimento Social está em negociação com a Prefeitura de Porto Alegre para o acolhimento desses imigrantes. A meta é transferir 500 venezuelanos até o final do mês de abril. Desde o início do mês, 265 deixaram Boa Vista, capital de Roraima, e foram levados para abrigos em São Paulo, Cuiabá e Brasília. Do jeito que esse país anda, em que coxinhas e mortadelas mal se suportam, não seria estranho que manifestações de xenofobia, já registradas em diversas cidades do país contra diversas nacionalidades – haitianos, angolanos, moçambicanos -, se repetissem com os venezuelanos nos demais estados. Este é o Brasil de hoje.