A história sobre o movimento que depôs o presidente João Goulart em 1964 tem diversas versões. Nesses 54 anos após o acontecido, historiadores ainda mantém como data-padrão para o golpe o dia 31 de março. Como as movimentações militares começaram na madrugada em que raiaria o dia 1° de abril de 1964, quando finalmente o país acordaria para o novo regime, sempre adotei o Dia da Mentira para o início da ditadura, o momento em que se quebraria a primeira esquina política, com o Congresso declarando vaga a Presidência e empossando Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara. Historiadores apontam que o termo correto para o episódio seria “Ditadura civil-militar”, já que uma parcela da sociedade apoiou o golpe. Logo depois viriam os generais presidentes Castello, Costa e Silva, a Junta Militar, Médici, Geisel e Figueiredo. Quem implantou a ditadura quis fugir das piadas, que chamassem de regime da mentira. Infelizmente, não foi uma mentira. Os custos são sentidos até hoje. Inclusive na qualidade da nossa classe política.
Hoje vemos saudosos da ditadura, a maioria sem tê-la conhecido – nem mesmo como curiosidade nos livros de história. Uma geração sem uma ideologia clara, mas com muita raiva. De tudo o que é diferente. Quem viveu os anos de chumbo, mesmo eu que nasci dentro deles – aprendi dentro de casa, especialmente com a consciência política do meu pai, a entender o que acontecia naqueles tempos sombrios -, tem dificuldades de entender como seres humanos aparentemente normais podem defender a volta de um período de exceção, de medo, de arbitrariedade, de perseguição, de censura, de torturas e desaparecimentos. De um falso progresso, de um crescimento com endividamento externo colossal, de um milagre sem igualdade social, concentrando a renda nas elites agrárias e nas burguesias urbanas. Mas, “se você parar pra pensar”, como diria Renato Russo, na verdade não há paradoxo. Essas pessoas não disfarçam seus preconceitos e sandices, robotizadas pelos holofotes das redes sociais.
Tempos loucos esses, em que um capitão reformado do Exército, que já planejou ataques terroristas, lidera pesquisas de intenção de voto para presidente, expurgado, claro, o ex-presidente metalúrgico que luta na Justiça para concorrer a um terceiro mandato. Bolsonaro, se você não sabe, iria explodir bombas em quartéis do Exército e em outros locais do Rio de Janeiro, como na principal adutora de água da capital fluminense, para demonstrar insatisfação sobre índice de reajuste salarial do Exército. Ele mesmo admitiu ao Superior Tribunal Militar, segundo documentos obtidos pela Folha de S. Paulo, ter cometido atos de indisciplina e deslealdade para com os seus superiores no Exército. Bolsonaro, renovado pela democracia, parece não entender que só é candidato – e tem esse direito – porque vivemos uma democracia. Na ditadura, seria escorraçado.
E 54 anos depois, vemos, agendados, em vários estados e com apoio inclusive de membros de alta patente do Exército, atos comemorativos em alusão ao golpe de 31 de março. Assim, vivemos em um país onde vestir verde e amarelo, como nos tempos do ‘ame-o ou deixe-o’, virou um patriotismo fake, histérico, grotesco. Onde patos, e agora sapos, foram retirados das fábulas infantis e apropriados pela elite industrial. Um país onde, a sete meses das eleições, espalham-se notinhas sugerindo que elas podem não ocorrer devido ao “agravamento do quadro de tensão polícia no país”. Como se adiar eleições, de novo, fosse um fato corriqueiro. Que país é esse, 54 anos depois do golpe? O que resta da ditadura? Pode-se dizer que a transição para a democracia continua em andamento? Ou vivemos um impasse? O importante é aprender com a história e não esquecer.