“Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado”
Chico Buarque, Cálice – cantado em dueto com Gilberto Gil, na Lapa, no showmício #Lulalivre
“Quantas vezes, quando a sociedade calou diante de barbaridades, foram os nossos músicos, escritores, cineastas, atores, dramaturgos, dançarinos, artistas plásticos, cantores e poetas que vieram lembrar que amanhã há de ser outro dia? Que ousaram acreditar em esperanças equilibristas e em flores vencendo canhões. (…) Onde querem silêncio, seguiremos cantando. Vocês não sabem quantas vezes a música, os livros, a arte, tem me ajudado a atravessar essa provação”.
Trecho de carta do ex-presidente Lula enviado a todos os artistas e ao público do shomício #Lulalivre
Você não vai ler, mesmo em fatias de espaços nos jornais e sites, nas TVs nem pensar, index prohibitorum, que, na noite deste sábado, 28, um show na Lapa, pela libertação do ex-presidente Lula, fez história.
Reuniu uma trupe seleta de artistas, dos maiores da nossa música, que migraram espontaneamente, sem cachê, para a região dos Arcos da Lapa, no Centro do Rio, para defender uma causa, uma ideia, um homem. Não espere isso de Alckmin, Bolsonaro, Marina ou Ciro Gomes. Eles têm claques pagas, militantes diaristas, robôs em redes sociais. Tentarão circunscrever o ato político a um mero festival na região boêmia do Rio, diminui-lo, como se as 100 mil pessoas presentes tivessem ido apenas para ver o incrível revezamento de artistas, como Chico Buarque, Gilberto Gil e Beth Carvalho, entre muitos outros.
Não foi um festival, como você lerá, foi o primeiro showmício da campanha de Lula, o primeiro de sua trajetória política em que o protagonista esteve ausente.
Sem Lula porque, como se sabe, embora candidato com os direitos políticos ainda intocados, está preso num cárcere em Curitiba, por uma farsa jurídica montada para mantê-lo fora do pleito, ainda que seja líder tão disparado nas pesquisas que venceria, talvez, em primeiro turno, e, certamente, em segundo turno, de qualquer candidato. A frase “Eleição sem Lula é fraude” nunca foi tão real. Eleitores que não votariam, ou votariam nulo ou em branco, estão migrando para Lula, mostram as pesquisas. O ex-presidente, no atual andar da carruagem, caminha para a quase unanimidade que teve ao deixar o governo. Como se, com o desastre do pesadelo Temer, muitos estivessem despertando de um sono profundo. Dilma foi derrubada, e o país do PSDB e Temer deveria ter dólar baixo, inflação controlada, déficit ordenado pelo dream team econômico, desemprego em queda. Não foi por isso que derrubaram Dilma por pedalar?
Alckmin e seu Centrão, Bolsonaro e seu discurso tosco e divisionista, Marina e seu não-discurso, Ciro e seu alarmismo maleável – depende se está no MST ou na Fiesp -, não são páreo para o candidato encarcerado. Sim, nunca antes na história desse país vivemos algo assim. Por isso, a madrugada de 29, fez diferença. Nas primeiras horas do dia, quando escrevo esse texto – em casa, com os filhos pequenos -, Chico e Gil cantaram juntos um dueto em Cálice. Vi pela TVT, a TV dos Trabalhadores. Os canais transmitiam sua programão normal – UFC Combate na TV Globo, Amaury Jr na BandNews, Encrenca, na RedeTV!, Programação IURD na Record, filme no SBT. Enquanto isso, Chico e Gil cantavam, e, ao final, entrou no palco Beth Carvalho, de cadeira de rodas, terminando de arrombar a festa. Jards Macalé, Chico César, Noca da Portela, Nelson Sargento e Odair José marcaram a multiplicidade do evento. Um boneco do ex-presidente foi inflado, mas acabou retirado do local pelos vigilantes fiscais do TRE.
Lula não estava lá.
Ao contrário dos eventos no acampamento Lula Livre em frente à Polícia Federal, Lula dessa vez não pode ouvir – por mais que se gritasse. No meio do público, máscaras com o rosto do ex-presidente se multiplicavam. Ele estava lá.