“Não tá morto quem peleia”, dizia o gaúcho antigo, vindo dos tempos das guerras platinas. Este ditado era a palavra de ordem dos combatentes, expressando que só existe um vocábulo no dicionário do guerreiro, a palavra “vencer”. É isto, em resumo, que diz o general Sérgio Westphalen Etchegoyen, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (SGI), no governo Michel Temer, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo.
O general escreve a propósito da tramitação e debate no Congresso de uma nova política econômico-financeiro para a Defesa Nacional, por conseguinte para as Forças Armadas. Ele alerta para a fragilidade estratégica do País, num cenário mundial de crescente insegurança, com as superpotências rosnando.
O Congresso, como se sabe, nunca foi atento às questões de política externa. Consequentemente, deputados e senadores, no conjunto, não conseguem entender as sutilezas, ou a rudeza, das relações internacionais. Muito menos onde o poder da força é inerente. O Brasil seria como um garoto grandão sem músculos, tipo balofo. É isto que o general procura mostrar. O golpe de estado é falta de imaginação, pensam os de uniforme.
“Vencer é o elemento central da atividade militar e, por isto mesmo, a grande servidão dos generais. A guerra, entendida como a preservação da soberania, não admite alternativa à vitória, simplesmente porque não há reparo possível para a soberania maculada”, afirma o general Etchegoyen, para botar o ponto nos ís. Assim é o militar, uma pessoa preparada integralmente, física, técnica e espiritualmente, para vencer ou morrer. Isto é muito importante de ser dito neste momento, para se entender o que se passa nos meandros de um governo repleto de fardados.
Ou seja: quem vai numa briga não pode entrar para perder. Subir ao ringue pronto para o nocaute é suicídio ou marmelada. Numa luta de vida ou morte, que é o caso dos militares quando entram em combate, é a única alternativa, inerente à existência da força armada nacional. Como adverte o general: “A História é farta em registro do trágico destino dos vencidos”.
Este conceito bate de frente contra o revisionismo histórico anacrônico em moda, que privilegia a “história dos perdedores”, que compõe o cardápio politicamente correto e inflama os ânimos de iconoclastas e dos chamados excluídos da narrativa dos construtores das nacionalidades e dos estados contemporâneos.
Conselho de Segurança
O general veio a público falar destes fundamentos para chamar atenção da classe política a abrir os olhos às suas responsabilidades. O estado brasileiro tem o dever de preservar a soberania sobre os territórios que herdou de seus antepassados. Diante de premissa tão dramática, seria de perguntar se há ameaças a esse status quo.
Começam a soprar ventos de guerra? Nada é impossível quando os vagalhões começam a se formar no Oceano Pacifico oriental. A demanda do ministro não parece nada alarmista, propondo o acréscimo de uma fração, inferior a 1%, para chegar a 2% do PIB de recursos para investimentos na área de defesa. Efetivamente, o que se propõe não contempla forças ofensivas. Tal como se ensaiou em governo passados, quando o país criava as condições materiais para equipar uma forca de intervenção que respaldasse sua candidatura a país-membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Nesta fase, a Marinha trocou o velho navio aeródromo Minas Gerais, dos tempos de JK, por um porta-aviões de última geração, o São Paulo, comprado da França, equipado com caças a jato, armas ofensivas, para se declarar capacitado a atuar em qualquer lugar do planeta para impor a lei internacional, conforme fosse determinado pela comunidade internacional reunida na ONU. Não é mais disso que trata o general. É uma nova situação.
Lição da II Guerra
No caso de uma guerra generalizada em nossos dias, de longa duração, como foram 1914 e 1939, com armas nucleares ou convencionais, o Brasil estará inevitavelmente envolvido, queira ou não. Foi o que ocorreu em 1942, quando os beligerantes dispunham de armamentos de longo alcance.
Batalhas navais nos mares do sul ocorreram nos tempos dos veleiros, nos séculos XVI a XIX, as últimas na Revolta da Armada, em 1895. Depois disso só na Segunda Guerra, com seus navios de grande autonomia.
No Século XIX, flotilhas das grandes potências operavam por aqui, ora cobrando contas atrasadas de dívidas externas, ora intimidando governos. A Argentina foi atacada por uma frota anglofrancesa.
No tempo do Império, os ingleses bombardearam portos brasileiros para impedir desembarque de escravos contrabandeados e, ainda, para desagravar o embaixador britânico ofendido nos desmandos da Questão Christie.
Guerra chega ao Brasil
Depois houve uma pausa, mas eles voltaram. Dia 31 de julho último a FAB lembrou os 77 anos do afundamento, em 1943, na costa de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, do submarino alemão IXD2 (chamado pelos brasileiros pelo nome de código Lobo Cinzento), do tipo U-199, integrante da 12 flotilha, com base em Bordeaux, na França. Vitória de estreia da primeira esquadrilha combatente da recém=criada Força Aérea Brasileira.
O navio inimigo chegou às águas cariocas em junho e já tinha posto a pique dois cargueiros, um americano e outro inglês, e afundado o pesqueiro brasileiro, o Xangri-Lá, matando seus 12 tripulantes, uma ação considerada crime de guerra. Atacado, deu trabalho: derrubou, em 7 de julho, um bombardeiro norte-americano Martin Marauder PB-M 3, e conseguiu fugir a tempo de um ataque da aeronáutica brasileira, com a Hudson A 28 A, mas não conseguiu submergir a tempo quando foi alcançado pelo PBY 5 (Catalina, o famoso Pata Choca) do aspirante Alberto Martins Torres. (Este aviador, depois desta façanha, integrou-se ao Grupo de Caça e combateu na Itália. Foi condecorado por americanos, franceses e ingleses, considerado ás da aviação militar).
Dos 61 tripulantes do Lobo Cinzento, somente 12 sobreviveram, entre eles o comandante, capitão-tenente (kapitänleutnant) Hans-Werner Klaus, resgatados e enviados como prisioneiros de guerra para Recife, onde estava o comando das operações conjuntas no Atlântico Sul.
Ao longo da guerra, foram afundados nas áreas de responsabilidade da Marinha do Brasil (daqui até as costas da África), 11 submarinos do Eixo, 9 alemães e 3 italianos. Os comboios aliados e navegantes solitários perderam centenas de navios de todos os tipos. Até latas-velhas que carregavam açúcar na costa nordestina eram alvo.
Naquele tempo, os submarinos não tinham armas de longo alcance. O torpedo era disparado com alvo visual, no periscópio ótico, a curta distância, para acertar um navio em movimento. Tinha de chegar à queima-roupa. Uma aventura.
Cadáveres nas praias
O primeiro navio brasileiro afundado foi o “Bapaendy”, transporte de tropas, que levava um contingente do Grupo de Artilharia do Rio, abatido na costa do Ceará, com todas suas luzes acesas, uma barbada para o comandante Harro Schacht, com seu U-507. 286 mortos. Sobreviveram 36, dentre os quais o comandante Lauro Martins dos Reis.
No mesmo dia, este submarino afundou por ali ao cargueiro ”Araraquara”, com 131 mortos, e, logo em seguida, o graneleiro ”Aníbal Benévolo”. O pior foi no litoral baiano, dois dias depois: os nazistas torpedearam o “Itagiba” e, logo em seguida, vendo os sobreviventes sendo recolhidos pelo velho ”Arará”, uma banheira a vapor de 1907, Schacht não perdoou, tascou um torpedo, disparado a 200 metros de distância, escreveu em seu relatório, botando ao fundo. Mais de 600 cadáveres foram dar na praia. O comandante alemão depois revelou que atacou aqueles navios indefesos porque estava no mar há 40 dias, sem nenhum resultado, e voltaria à base em Kiel, na Alemanha, para reabastecimento. Não queria chegar sapateiro, com relatório em branco. Gastou seus torpedos. Um burocrata dos mares.
O comandante Harro Schacht conseguiu escapar da costa brasileira e ficou ainda mais de um ano a operar nos mares do Sul, até ser mandado, com sua tripulação, para as profundezas do mar. Estava caçando na costa da África quando foi encontrado por um avião da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF) com equipagem mista de brasileiros e norte-americanos, lançado da Base Aeronaval de Recife, sede do comando da Força Naval do Nordeste, da Marinha do Brasil, comandada pelo almirante Soares Dutra, e da Quarta Esquadra Norte-Americana, do almirante Jonas Ingram.
Já então marinhas e aeronáuticas dos dois países encurralavam os submarinos do Eixo. Os recursos humanos militares se equivaliam. A Marinha do Brasil e a FAB estavam no estado da arte da guerra em poucos meses. Isto se devia a um programa de formação de quadros, que possibilitou uma rápida adaptação às novas armas, em nível de enfrentar uma potência do nível da Alemanha, num espaço de altíssima tecnologia, naqueles tempos, como era a guerra antisubmarina.
Lobo do mar
Os cardumes de submarinos seguiam os comboios, sorrateiros, à espera de um descuido ou inabilidade do comandante de um cargueiro, que se apresentasse como alvo. O Brasil conseguiu reagir porque, embora não tivesse as armas adequadas, tinha recursos humanos, tripulações com muita vida de mar, segundo contou o vice-almirante (da reserva) Helio Leôncio Martins, já centenário, historiador militar no final de sua vida, veterano daqueles tempos.
Ele relembrava sua entrada em combate na guerra. O Brasil já tinha rompido relações diplomáticas com o Eixo (Alemanha, Itália e Japão), mas não declarara guerra, equilibrando-se diplomaticamente como neutro, embora já estivesse apoiando os aliados (EUA, Inglaterra, União Soviética, França e Polônia), mandando matérias-primas para os Estados Unidos, oficialmente beligerantes.
Alguns navios brasileiros já haviam sido torpedeados, mas navegavam nos Hemisfério Norte, nas costas americanas. O primeiro foi o navio-frigorífico “Bagé”, barco de bandeira brasileira, afundado na zona de exclusão do Golfo do México. Contudo, a América do Sul continuava como área pacífica, embora os americanos estivessem construindo bases aéreas e navais, e treinando tropas de infantaria e artilharia de costa no noroeste do Brasil. O comandante era o general de artilharia Mascarenhas de Moraes, que depois foi à Europa como comandante da Força Expedicionária Brasileira (FEB), na Campanha da Itália.
O almirante Leôncio fez sua carreira na Marinha no convés de navios de guerra. Seu último comando na ativa foi da nau capitânia da esquadra, o porta-aviões Minas Gerais. Um lobo do mar. Foi consultor deste cronista sobre história naval em meu livro “Cem Anos de Guerra no Continente americano”, da Editora Record.
Ele era capitão-de-fragata (major no Exército e Aeronáutica) no comando de um velho cruzador da Primeira Guerra, a 200 milhas da costa, na latitude de Santa Catarina, quando recebeu a notícia de que estava metido na guerra. Pelo telégrafo sem fio (código Morse, sem voz), único equipamento de telecomunicação do barco, chegou a mensagem e recebeu ordens para rumar para a área dos torpedeamentos. Aproou norte e se foi, sabendo que não teria a menor chance de enfrentar um submarino sem dispor de nenhum instrumento adequado. Mas seguiu. Logo em seguida novas ordens, mandando se apresentar no Rio de Janeiro.
Na capital, mal atracou, o comandante Leôncio, demais oficiais e tripulantes foram embarcados para os Estados Unidos. Logo entraram em intenso treinamento nos modernos contra torpedeiros, lá chamados de “destróier” (destruidor em português), os caças submarinas Classe Geary (Classe Bertioga, na nomenclatura do Brasil), as armas de superfície mais modernas e com os equipamentos eletrônicos, radares, sonares, etc., recém postos em serviço.
Não precisou muito tempo. Três meses e os marujos brasileiros já estavam navegando lado a lado com os americanos. “Nós tínhamos muito conhecimento de mar. Isto foi essencial para mostrar ao mundo que estávamos em igualdade”. Ou seja, o Brasil pôde, graças a seus recursos humanos qualificados, integrar-se na batalha como parceiro útil. Seus marinheiros eram navegadores veteranos e as tripulações tinham base teórica para se converterem em guerreiros de elite sem nada a dever aos norte-americanos, já então o país mais adiantado do planeta e maior potência militar no conflito mundial. A força naval do Nordeste era uma parte equivalente, dividindo responsabilidade de igual para igual. Isto foi politicamente decisivo.
A Batalha do Atlântico
Os contra torpedeiros brasileiros e americanos vasculhavam o fundo do oceano com seus sonares subaquáticos e a superfície com radar. Uma briga de foice no escuro. Ali os marinheiros brasileiros, compondo forças conjuntas e dividindo o comando com norte-americanos, enfrentava os cardumes de submarinos do Eixo que tentavam impedir o suprimento das tropas e da indústria bélica no Hemisfério Norte. Os aparelhos de precisão marcavam as posições dos u-boats inimigos, chamavam a aviação, FAB e USAF, lançada das bases de Natal, Recife, Fortaleza, Salvador ou Belém. Os bombardeiros procuravam surpreender os alemães das tripulações tomando sol nos tombadilhos, enquanto se recarregavam as baterias dos motores elétricos, essenciais para a navegação submersa. Assim, de um a um, todos esses submarinos foram destruídos. Os marinheiros inimigos sobreviventes resgatados e levados como prisioneiros de guerra para os campos de prisioneiros no Nordeste, principalmente na Bahia.
A história do Comando Naval do Nordeste, na Batalha do Atlântico Sul, foi magnificamente contada num livro monumental, o romance histórico ”A Bordo do Contratorpedeiro Barbacena”, do vice-almirante João Carlos Gonçalves Caminha, que combateu nessa epopeia embarcado no contratorpedeiro Guaporé.
Afundando o Luckner
O historiador recria toda a guerra do Atlântico Sul. Conta toda a jornada do navio corsário alemão Luckner, saindo de Tóquio, costeando a África no Oceano Índico e depois no Atlântico, refluindo na direção do Brasil, pretendendo chegar à Argentina. Perseguido por destróieres brasileiros e um cruzador norte-americano, acabou afundado na altura da Ilha de Trindade, seus tripulantes capturados e levados prisioneiros para o Nordeste.
Também conta a tresloucada abordagem de um contratorpedeiro brasileiro por um barco pesqueiro de bandeira argentina, tripulado por marinheiros alemães. Pesqueiros de alto mar, baseados no porto de Comodoro Rivadávia, eram tripulados por marinheiros alemães do cruzador alemão Graf Spee, afundado no rio da Prata, internados no país vizinho, trabalhando na indústria da pesca.
Estes barcos serviam para reabastecimento de submarinos alemães operando no Atlântico Sul. O governo de Buenos Aires, aparentemente, fazia vistas grossas. Ou seja: o general Etchegoyen não está vendo fantasmas ou bruxas soltas no ar. Se o tempo fechar, o Brasil estará no meio da tempestade.
Delírios ideológicos
A guerra estava ali, na saída da Baia de Guanabara. O Brasil ainda era um país totalmente periférico, que só interessava ao esforço de guerra pelo fornecimento de algumas matérias-primas para a indústria dos países beligerantes. Muito distante de sua posição estratégica de nossos dias, com seu parque fabril, inclusive de material bélico, produtor de alimentos, de petróleo, de minerais estratégicos e sensíveis, como urânio enriquecido, e assim por diante.
Agora não mais se fala nisso de atacar, apenas em dissuasão, ou seja, desencorajar agressores. Seria uma demanda real? A crescente tensão entre a potência de nosso hemisfério, os Estados Unidos, e o gigante asiático, a China, estaria a ameaçar um conflito, que poderia chegar às costas das Américas? É um caso a pensar e, como dizem por aí, o seguro morreu de velho.
O artigo em questão, do general Etchegoyen, chama atenção do Congresso para as demandas da área de defesa, apresentado há dias pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, “cumprindo o disposto na lei complementar que trata da organização, do preparo e do emprego das Forças Armadas”. Ele fala do documento que tratava da Política Nacional de Defesa (PND) e da Estratégia Nacional de Defesa (END).
Diz o general concluindo seu artigo: “Discutir as Forças Armadas sem ter em conta sua real destinação e suas peculiaridades é esforço estéril, que, com frequência indesejável, escorrega para delírios ideológicos improdutivos, insinuação de censura a determinados autores e comparações incompatíveis com a grandeza do Brasil”.