Um salto na câmara escura

Jair Bolsonaro e o dilema da sucessão na Câmara - Foto Orlando Brito

O simulacro de governo optou por mergulhar de cabeça na disputa das presidências do Congresso Nacional, uma das temerárias armadilhas políticas de todos os tempos. Mais comedido no Senado, Bolsonaro investe explicitamente em Arthur Lira para comandar a Câmara depois dos recorrentes atritos com Rodrigo Maia. Da perspectiva institucional, para quem tem índole golpista e pretendia deslegitimar ou fechar instituições há pouco tempo, a rendição democrática pode até ser vista como progresso, mas sempre com muitas reservas.

Os riscos das eleições no Congresso são elevados. Para garantir uma relativa tranquilidade nos próximos dois anos, o Executivo investe na puída fisiologia. Terá de entregar os dedos e anéis antecipadamente correndo o risco de inflacionar e nunca mais fechar balcão de negócios. Outra ameaça são as tradicionais traições no voto secreto.

Maia na campanha de Baleia – Foto Orlando Brito

Politicamente alguns fatores marcarão a disputa. Do lado governista, Arthur Lira tem muitos passivos éticos para explicar e contas para acertar em um colégio eleitoral viciado no toma lá dá cá, que o capitão fingia reprovar na campanha. Baleia Rossi, candidato de Maia, aglutinou a oposição, parte do centro e larga de uma agenda de fortalecimento da democracia, direitos sociais e compromissos com Comissões Parlamentares de Inquérito, que têm potencial para desestabilizar governos. Pela proximidade com ex-presidente Michel Temer, Rossi enfrenta a desconfiança de alguns setores petistas em razão do processo de impeachment de Dilma Roussef. Mas na eleição da mesa da Câmara vem prevalecendo a lógica do pleito municipal de algumas capitais, como Rio de Janeiro e Fortaleza. Todos unidos para derrotar Jair Bolsonaro.

Ciro Nogueira, o articulador da campanha de Lira, o preferido de Bolsonaro – Foto Orlando Brito

Arthur Lira tem pouco a perder. Se vencer não consolida uma liderança política, uma vez que será subalterno, devedor do Palácio do Planalto e passará a administrar um condomínio de miudezas da fisiologia. Com Lira vitorioso a pauta fúnebre e reacionária de Bolsonaro ganha prioridade, mas não garantias de prosperar. Na hipótese de êxito de Baleia Rossi a reforma tributária recupera o fôlego e também as políticas de proteção social. Embora tenha sido excluído da agenda elaborada pela oposição, o impeachment ressurgirá com força e poderemos ter um gabinete de sombras, típico do parlamentarismo, com Maia de primeiro-ministro informal. Com Baleia serão, no máximo, 2 anos de mais abulia governamental numa torturante contagem regressiva para o fim de um flagelo.

A história é pródiga em paradigmas nos quais as eleições internas do Congresso contribuíram para abreviar mandatos. Uma rápida retrospectiva dá a dimensão do poder das estratégicas cadeiras dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, usadas ora legitima, ora ilegitimamente. Em 1964 a voz tonitruante de Auro de Moura Andrade ecoou fantasmagoricamente para consolidar o golpe militar declarando vaga a presidência da República, mesmo com o presidente ainda no país. Moura Andrade elegeu-se presidente do Senado em 1963 e 1964 como candidato de oposição a João Goulart. Já na abertura do Congresso declarou o rompimento entre as relações entre o Legislativo e o Executivo. No mesmo mês participou da traumática marcha da família com Deus pela liberdade. Em um encontro no dia 30 de março lançou um manifesto golpista convocando as Armadas para a ruptura.

O marechal Castello Branco com Ranieri Mazzili, Alckmin e Magalhães

O coroamento da farsa, compartilhada pelo Congresso, veio no dia 2 de abril de 1964, quando declarou ilegalmente a vacância da presidência. O presidente da Câmara Ranieri Mazzili foi empossado, mas o poder era dos militares do chamado Comando Supremo da Revolução que, 7 dias depois, editou o primeiro Ato Institucional suprimindo as garantias constitucionais, suspendendo direitos políticos, cassando mandatos e fixando a eleição indireta para presidente e vice-presidente da República. Moura Andrade morreu vítima do próprio veneno. Perdeu a presidência da República para o General Castelo Branco, que inaugurou a mais tenebrosa fase de terror no Brasil que durou até 1985. Em uma sessão tumultuada, o discurso de Moura Andrade estendeu o tapete para o desfile dos facínoras fardados que viriam a seguir:

“O senhor presidente da República deixou a sede do governo. Deixou a nação acéfala, numa hora gravíssima da vida brasileira, em que é mister que o chefe de Estado permaneça a frente de seu governo. A acefalia continua. Há necessidade de que o Congresso Nacional, como poder civil, imediatamente tome atitude que lhe cabe, nos termos da Constituição, para o fim de restaurar, na pátria, conturbada, a autoridade do governo, a existência do governo. Não podemos permitir que o Brasil fique sem governo, abandonado”. João Goulart, como se sabe, estava no Rio Grande do Sul e contava com a solidariedade das tropas legalistas. A comunicação da permanência de Jango em território brasileiro foi feita pelo então chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, lida pelo 1 secretário à época e, criminosamente, ignorada por Moura Andrade.

Na primeira eleição direta após o golpe, Fernando Collor de Mello também experimentou a força de um presidente da Câmara em oposição ao governo. Chafurdando em escândalos e patifarias, Collor de Mello seguia rumo ao patíbulo com o abandono dos aliados políticos. Do outro lado da rua quem retesava a corda era o presidente da Câmara, o deputado Ibsen Pinheiro, um ex-Promotor de Justiça, vereador, deputado estadual, federal e presidente da Câmara. Ibsen Pinheiro, falecido em 2020, foi decisivo na celeridade e na cassação de Collor, uma vez que ele, de próprio punho, redigiu o rito do processo de impedimento. A lei sobre o tema era de 1950, assinada por Eurico Gaspar Dutra, e tinha várias lacunas. A principal delas, a modalidade do voto, foi bancada por Ibsen. O voto aberto e ostensivo foi capital para o resultado.

Chinaglia, o candidato derrotado de Dilma – Foto Orlando Brito

Dilma Roussef foi outra presidente eleita que enfrentou o presidente da Câmara. Dilma errou ao patrocinar a campanha do petista Arlindo Chinaglia que obteve míseros 136 votos em uma das eleições que mais envolveu traições dentro da base governista. Cerca de 50 deputados, teoricamente aliados do Palácio, votaram no oposicionista Eduardo Cunha. O enredo macabro que se seguiu é conhecido. Eduardo Cunha precisava dos 3 votos do PT na Comissão de Ética para escapar da cassação por corrupção. O PT encarou Cunha e quem pagou a conta foi Dilma com a abertura do processo de impeachment manufaturado pelo presidente da Câmara em represália aos petistas. Cunha foi cassado e preso em 2016. Dilma perdeu o mandato no mesmo ano ensejando uma vigarice institucional patrocinada pela lava jato que entronizou no poder um celerado.

Greenhalgh, o candidato derrotado de Lula – Foto Lúcio Távora/ObritoNews

Lula escapou dos processos de impeachment, mas também errou e perdeu a briga pelo comando da Câmara. O candidato petista foi Luiz Eduardo Greenhalgh, que não era o favorito dentro da bancada. O racha petista provocou uma das maiores derrotas políticas do governo Lula. Greenhalgh obteve 195 votos no segundo turno e foi derrotado pelo rei do baixo clero, Severino Cavalcanti. A medíocre gestão de Severino, do mesmo PP de Arthur Lira, foi encerrada com a renúncia em 2005 e criou muitos embaraços para o governo. Severino eternizou-se pela cobrança de um ‘mensalinho’ (propina paga a ele por um empresário que explorava um restaurante na Câmara dos Deputados), demonstrações despudoradas de fisiologia, nepotismo e pela célebre frase ao pedir ao governo a diretoria de Petrobrás “que fura poço”.

Os governos, direta ou indiretamente, se envolvem nas disputas internas do Congresso Nacional. O segredo para evitar ressentimentos, vinganças e escapar da guilhotina política é a sutileza e habilidade nas negociações. Mesmo que dissimulada, a postura recomendada nos manuais é manter a aparente equidistância e repisar o discurso da independência dos poderes. Bolsonaro foi deputado por 27 anos, viu quase todas as crises, mas não aprendeu nada. Entrar acintosamente na disputa, sem certeza da vitória, é fator de desestabilização e isolamento que encurta mandatos. Mas o capitão, incompetente, irrefletido, mal intencionado e desastrado, não tem sensibilidade nem com a vida e, no geral, apresenta cognição deficiente. Não parece minimamente receptivo aos ensinamentos históricos que podem lhe custar o pescoço.

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