Um dia, quem sabe?

Um famoso escritor brasileiro, lá pras bandas das Minas Gerais, publica um conto, justamente seu conto de estreia, num caderno literário de um importante matutino belo-horizontino, e não sabe disso até hoje? Será que agora vai saber?

O skyline de Belo Horizonte - Foto: Orlando Brito

Um dia, quem sabe S. vai descobrir que seu primeiro conto publicado fui eu, e não aquele que, orgulhosamente, ele me mostrou estampado nas páginas do Caderno Literário do Estado de Minas? Fui eu porque eu – por inteiro – sou criação dele. Criação do seu espírito rebelde, forjado em lutas sindicais e depois partidárias. Desde quando S., com o mesmo orgulho, me declarou haver abandonado essas bobagens políticas. Virara escritor.

Sou seu conto também porque foi S. quem me fez ficar bisbilhoteira, desbocada, sem limites no que sinto, no que faço e no que escrevo. “Detesto limites”, ele me ensinou um dia, num assento apertado daqueles ônibus antigos, quando íamos para nosso emprego comum. Eu sorvia em grandes goles os olhares dele, e suas declarações sempre feitas em tom doutoral, como um professor que ensina a uma aluna disciplinada. E atenta. Sou atenta e disciplinada – embora sem limites para nada.

Nas páginas daquele Caderno Literário as letras pareciam brilhar. Eu, sofregamente, fui devorando e decorando tintim por tintim o enredo criado por S., sobre o que sente a multidão que se acotovela para ver o corpo caído no chão, em frente do Edifício Acaiaca, pleno centro de Belo Horizonte.

A bela Igreja de São José, em Belo Horizonte (MG)

Ninguém ali está com pena do morto, mas apenas pensando que poderia ser ele próprio e que, se fosse ele próprio, como se sentiria? O que pode sentir um morto, mortíssimo, caído no meio da avenida já barulhenta nos anos 1960? Com cara de pena, de dó, as pessoas param e contemplam o cadáver, mas dó a gente só sente é em relação à gente mesmo, podia ter sido eu, tentando cortar a larga avenida, correndo entre os carros para chegar à escadaria da Igreja São José. A bem da verdade, aqueles penalizados eram sobreviventes de si mesmos.

Porque todo o mundo só fazia assim naquele tempo: cortava a pé, em diagonal, a perigosa confluência de Afonso Pena com as ruas Espírito Santo e Tamoios. Não tinha sinal de pedestre. E, quem iria, mesmo se tivesse, ficar esperando o sinal abrir e fechar, com tanto carro passando por ali àquela hora, hora de pegar o ônibus para chegar em casa?

Olha que, comparados com hoje, os sinais abriam e fechavam na rapidez de uma flecha. E ainda não havia motos, o povo vive amaldiçoando-as: não respeitam nada, tiram fininho nos vidros laterais dos carros, além de dar cada raspão na gente, gente viva, que nem te conto!

A história de S. me espantou: será que a aglomeração que se forma no conto não tem nada de compaixão? Nem a daquela mulher que sei lá de onde tirou uma vela e acendeu aos pés do morto? Ou de quem cobriu com jornal a cara dele, já pálida, com a cor de cera que rapidamente colore a cara dos defuntos?

O Grande Hotel, no Centro Antigo de BH

Ou de um pedestre que, passando por ali, deu uma corridinha até o ponto do bonde, onde se vendem flores, subindo Bahia, bem ao lado do Parque Municipal? Os  cravos que porventura ele comprasse e ajeitasse entre as mãos do morto, não fariam nenhum sentido? Nem ao menos uma dessas criaturas demonstrava compaixão?

Foi isso que ele, S., escreveu, e publicou orgulhosamente no “Caderno Literário” do grande jornal dos mineiros, como seu primeiro conto. Sequer parou para pensar e descobrir que seu primeiro conto já havia sido publicado.

O protagonista estendido no asfalto, os curiosos à volta, a vela, o jornal e as flores nada tinham a ver comigo. Eram estranhos em nossas vidas, seres muito distantes de nossa verdade literária.

A primeira personagem de S. tinha sido eu, jovenzinha e viva como nunca. Que às vezes atravessava descuidadamente aquele cruzamento, na certeza de que nada iria acontecer de ruim a quem entrava na maioridade. Que já sentia compaixão. E era eu que repetia, letra por letra, o que S. me mandava dizer nas assembleias de nosso sindicato, que ele era da Polop e a Polop brigava com o Partidão, mas ia eu lá saber que existiam tais coisas no sindicato? Para mim, só tinha a peãozada, que eu conhecia bem e que me admirava pelos meus arroubos na hora de falar, e os engenheiros que me olhavam de banda, me achando meio lelé da cuca.

Mas lelé da cuca ficaram eles, os engenheiros, quando empatei com o candidato deles na eleição para presidente do sindicato. Tiveram de improvisar e inventar que o desempate era pela idade, e quem era eu aos 18 anos para ser mais velha que qualquer engenheiro?

E assim fui seguindo em frente, sempre menina maluquinha, sempre acreditando nos que me olhavam com grandes olhos e quase me hipnotizavam, dizendo coisas mirabolantes e fora de propósito. Como os versos que, uma manhã bem cedinho, S. me sussurrou ao ouvido, eu meio tonta de sono, enquanto o ônibus rodava pela cidade, nos levando para nosso emprego.

Capa de um dos mais famosos contos de Machado de Assis

Eram versos – talvez destacados de longo poema – sabidos de cor, misteriosos, labirínticos. Às vezes S. precisava aumentar o tom de voz, tentando cobrir o ruído do acelerador. A memória me trai, somente algumas palavras poéticas soltas ficaram gravadas. Vejo-me na mesma situação do personagem machadiano do conto “Missa do Galo”, que assim começa: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos…” Parodiando: Nunca pude entender os versos que um colega de trabalho me declamou num coletivo, há muitos anos…

Porém, tempos mais tarde, não sei como fiquei sabendo que aquelas palavras lindas não eram de S., mas de Carlos Drummond de Andrade. Que importância tinha isso, se àquela altura eu já era o primeiro conto publicado de S., que depois virou escritor famoso? Cheio de livros e de mulheres? Premiadíssimo? Um dia, quem sabe…

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