Senhor, por que silenciaste?

Na famosa - e fatídica - reunião de 30 de março de1974, os generais ditadores referendaram as execuções pregressas, entre elas, a de Fernando de Santa Cruz. E avalizaram as que estavam por vir. Era a ditadura escancarada

Regime militar - Foto: Orlando Brito

Elio Gaspari, cujo conhecimento sobre os porões da ditadura militar é indiscutível e insuperável, assinalou que a prisão de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira ocorreu no último mês de governo do General Garrastazu Médici. Como se pode ler em carta endereçada por sua mãe ao sucessor de Médici, o General Ernesto Geisel − que tomou posse no dia 15 de março de 1974 −, sua detenção e a de um amigo teriam ocorrido no dia 23 de fevereiro de 1974. Documentos da Aeronáutica e da Marinha confirmariam a captura de Santa Cruz naquela data.

Fernando Augusto de Santa Cruz

No dia 30 de março de 1974, portanto, duas semanas após a posse do novo presidente da República e exatos 35 dias depois do desaparecimento de Santa Cruz, houve uma reunião entre o chefe de Estado, General Ernesto Geisel, e os generais Milton de Souza Tavares e Confúcio Danton de Paula Avelino, “respectivamente o ex-chefe e o novo chefe do Centro de Inteligência do Exército (CIE)”. Quem qualifica os interlocutores do presidente da República naquela reunião é um memorando do diretor da CIA, expedido em 11 de abril de 1974, e dirigido ao então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger.

Este documento pôde ser divulgado de forma ampla, recentemente, por mérito do Professor Matias Spektor, coordenador do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. Por este meio ficou-se sabendo também que o General João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), havia participado da reunião.

General Milton Tavares

Segundo o informe de inteligência norte-americano, firmado por William Egan Colby, o General Milton Tavares de Souza teria sido quem mais falou na reunião. Prestava contas.

Teria descrito “o trabalho do CIE contra a subversão interna durante a administração do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici. Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e afirmou que métodos extralegais deveriam continuar a ser empregados contra subversivos perigosos”.

O documento arremata dizendo que “o general Milton relatou que cerca de 104 pessoas, nessa categoria, haviam sido executadas sumariamente pelo CIE durante o último ano, ou pouco mais de um ano. Figueiredo apoiou essa política e defendeu sua continuidade”.

Seria mera coincidência a semelhança de conduta desses militares com o que Hannah Arendt, frente ao depoimento de Eichmann, definiu como a “banalidade do mal”? Seria essa frieza fruto das lições aprendidas pelos “jovens turcos” do Exército Brasileiro em seu estágio, a partir de 1910, junto aos Junkers prussianos?

A naturalidade com que dispunham de vidas é de estarrecer. Por que tanta crueldade? Aonde queriam chegar? Imaginando-se tal reunião, a imediata remissão à famosa Conferência de Wannsee, realizada em 20 de janeiro de 1942, por iniciativa de Reinhard Heydrich, o homem do “coração de ferro”, segundo Hitler, é desconcertante. Ali se discutiu a Decisão Final da Questão Judaica (Endelösung der jüdischen Frage).

Em 30 de março de 1974, em Brasília, discutiu-se a solução final dos esquerdistas brasileiros. Por quê? E por quanto tempo ainda viveremos sem resposta?

Santa Cruz, por certo, foi arrolado nessa macabra lista de “terroristas” eliminados por “métodos extralegais”. Repita-se: por “métodos extralegais”.

Não poderia ser rotulado como “subversivo perigoso”, pois, como bem observa Elio Gaspari, aquele militante era uma pessoa que “tinha vida legal, família constituída e domicílio conhecido”.  A “Folha de S.Paulo”, em sua edição de 31 de julho de 2019, assinala que “nenhum documento escrito sobre ele pela ditadura o vincula a qualquer ato violento ou da esquerda armada”.

O presidente Geisel e o general Figueiredo – Foto: Orlando Brito

A sinistra reunião ocorrida pouco mais de um mês após o desaparecimento de Santa Cruz tinha por objetivo extrair a manifestação de Geisel sobre a pertinência ou não da continuidade da política de extermínio das organizações de esquerda, fossem elas optantes pela luta armada ou pela via democrática e pacífica para a derrubada do regime autoritário. Geisel, segundo o documento, teria pedido alguns dias para refletir e, ao final, decidiu que a política deveria continuar, mas que a execução de “subversivos” deveria ser submetida à prévia aprovação do General João Baptista Figueiredo.

Há quem se espante. Mas vale lembrar que os votos proferidos por Geisel quando ainda era ministro do Superior Tribunal Militar, nos processos que envolviam a aplicação da Lei de Segurança Nacional, são considerados, em geral, draconianos.

Santa Cruz, provavelmente, foi vítima dessa política de execução sumária de “inimigos do regime”, contados às centenas, conforme relatou o General Milton Tavares de Souza.

Cento e quatro execuções sumárias por métodos extralegais. Brasil acima de tudo (uma paráfrase do primeiro verso do hino alemão: Deutschland über alles, über alles in der Welt)! Deus acima de todos!

Em tempos de tanta evocação divina desprovida de sentido, talvez seja preciso repetir as palavras do Papa Bento XVI, “um filho da Alemanha”, ao visitar Auschwitz: “ Senhor, por que silenciaste? Por que toleraste tudo isto?”

Thales Chagas Machado Coelho é mestre em Direito Constitucional UFMG, professor de Pós-Graduação em Direito Eleitoral no Centro de Estudos em Direito e Negócios (CEDIN)

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