Coronavírus e o instinto coletivo

Em Roma, bom humor para vencer o surto de coronavírus - Reprodução EuroNews

No artigo anterior, destacamos que, com a expansão do Covid-19, o importante era sobreviver e deixar as confabulações sobre guerra híbrida et caterva para depois. Com a expansão da doença ao Ocidente, que coincide com o arrefecimento dela na China, porque foi onde começou, tem circulado análises em que esta diferença de timing é parte de um plano para que o país asiático domine a economia global. Há também a versão oposta, segundo a qual o coronavírus é uma arma biológica americana.

Nos últimos dias de turbulência nas bolsas de valores, de fato, a desvalorização dos papéis de diversas empresas pertencentes aos países ocidentais fez a China ampliar a participação em tais companhias. Uma ordem do presidente Xi Jinping teria feito com que ações fossem compradas por estatais e por cidadãos chineses. Experientes observadores do mercado financeiro perceberam um movimento chinês comprando participação em empresas americanas, europeias e latinas fora da terra do Grande Timoneiro. Aparentemente, acumulou forças para aumentar o controle sobre sua economia, reposicionando-se em vantagem diante do cenário de caos econômico que deve deteriorar o PIB mundial.

O mais provável é que a China tenha feito do limão uma limonada. As operações de compra de companhias realizou foi o que todo investidor está fazendo. Ademais, a economia encolheu 13% desde o início da pandemia. Pode ser duro, mas é melhor aceitar a hipótese do “suco” e de que tudo isso é mais uma consequência da grande depredação natural que promovemos, inclusive os chineses.

Centro de monitomaento da pandema do Covid19 – Fotos Públicas

Culpar a China pela criação da doença ajuda as coisas a parecerem apenas um conflito geopolítico, com seus desdobramentos em cada país. Um exemplo disso é a retórica governista antichinesa: usa-se o artifício do inimigo externo contra quem se deve unir o país, desvirtuando política e ideologicamente a união nacional contra uma doença. Mas essa associação política não passa de ilusão.

O que a expansão da pandemia diz ao inconsciente coletivo é que somos apenas mais uma das espécies do Planeta, ainda que a dominante. Aliás, esta condição nos dá duas escolhas: cuidar de todos os seres ou autoafirmar nossa fantasiosa supremacia. Textos religiosos que anunciaram um apocalipse não são falsos, apenas discorreram alegoricamente sobre como um caminho egoísta, ganancioso, enraivecido e afastado dos mecanismos cooperativos da evolução (também conhecidos pelos mais básicos princípios religiosos) poderia nos levar ao limite da existência.

Seja o que for o coronavírus, ele ativou o instinto de sobrevivência dos homo sapiens. Com a crise neste nível, sem conseguir reconhecer padrões, o cérebro percebe que as respostas disponíveis vão deixando de servir e as procura fora do ego individual, abrindo-se para compartilhar e receber informações, opiniões, experiências…em busca de reconhecimento de padrões. E já é inevitável que o “programa” da cooperação cresça e se emparelhe com o da competição.

Você acha que raciocina politicamente, socialmente e economicamente, mas, em primeira instância, o instinto coletivo é quem age, riscando uma linha entre quem tende mais à cooperação e quem tende mais à competição, colocando-os para alcançar um equilíbrio que seja compreendido pela espécie como caminho seguro para progredir. Quando uma senhora idosa do grupo de risco conta por quantas pessoas doentes passou na vida, as doenças que teve e como lidou com isso, ela apenas passa, involuntariamente, seu pacote de dados caso possa ser útil à espécie naquele sentido. O bate-boca de ortodoxos e heterodoxos econômicos é tão somente isso. É a linha riscada de tendências que leva pessoas a escolherem entre direita, centro e esquerda, ou se transitarem no mapa ideológico.

O nó é que a quantidade de distrações que criamos e a dificuldade de compreender este mundo que produzimos poderão confundir a percepção das razões que podem nos levar a pular esta fase. Sri Vivekananda, um dos ícones do pensamento indiano, em encontro do Parlamento das Religiões Mundiais, realizado em Chicago, em 1893, resumiu o maior dilema da mente humana: “Havia um macaco, agitado por natureza própria, como são todos os macacos. Como se isso não bastasse, alguém deu-lhe muito vinho a beber e assim ele ficou ainda mais agitado. Foi então picado por um escorpião. Quando um homem é picado por escorpião, ele pula durante um dia inteiro;  assim, o pobre macaco ficou pior do que nunca”.

Em quarentena residencial, as italianas vão à janela para cantar – Reprodução EuroNews

Por isso, é fundamental que o lado empático  e altruísta, formado pelos que tem tendências cooperativas dominantes, não desista nem dos cuidados pessoais e com a comunidade e nem dos que tendem à competição autoafirmativa e negadora. Até porque os últimos, ao se deprimirem com a frustração de terem caídos infectados, confundem o inconsciente coletivo, pondo em xeque a luta pela vida. Estes, pelo menos, tem que despertar para se somar ao barulho das sacadas dos velhos italiotas, que é o instinto de sobrevivência cantando, realizado no milagre da linguagem. A ancestralidade do Brasil – indígena, européia, africana, japonesa, árabe, judia et alii, embora violentamente alienada da consciência dos brasileiros, conforma um inconsciente coletivo eficaz em resistir e um instinto coletivo eficiente em sobreviver.

Precisaremos de todos para fazer com que a piora da marca existencial da impermanência da vida seja transformada em uma nova substancialidade comum, onde a nítida compreensão da interconexão de todos os seres prevaleça. É até um modo de reverenciar aos que morreram antes pelo Covid-19 para que os demais pudessem melhor se adaptar. Quem sabe, após esta pandemia, conquistemos a dignidade de despertar o interesse do Oumuamua*.

* Em 2017, um objeto interestelar passou “próximo” à Terra, o Oumuamua, despertando diversas discussões entre os astrônomos sobre a natureza dele. Alguns cogitaram ser um artefato alienígena, levantando paralelos com o livro “Encontro com Rama”, de Arthur Clarke. O enredo do romance nos situa em medos do século XXII e narra o descobrimento de uma imensa nave extraterrestre que entra no Sistema Solar, mas não demonstra o mínimo interesse pelo nosso mundo e ignora completamente o nosso planeta antes de acelerar para um novo destino extragaláctico. Supõe-se que em virtude do atraso dos humanos.

Nota: Este artigo é apenas uma crônica política.

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