Os ricos e os pobres: diferentes nas chuvas e no tratamento da saúde

As chuvas caem para todos, assim como os vírus circulam democraticamente. A igualdade entre os humanos para por aí. Vítimas das chuvas, ricos e pobres têm tratamento distinto dos governos locais. Vítimas do doenças diversas igualmente são tratados conforme suas posses e origens

Continua chovendo em Belo Horizonte e arredores. Volta e meia a Defesa Civil de alguma dessas cidades da Região Metropolitana assusta os moradores com avisos para não saírem de suas casas. Fica todo mundo sem ir à rua. Rezando e esperando – ainda bem que mineiro é mesmo carola!

Nunca mais, porém, na Capital, voltou a chover como naquela terrível terça-feira, dia 28 de janeiro. Todo mundo, aqui e fora daqui, se lembra das imagens perturbadoras de carros flutuando, avenidas desaparecendo debaixo de rios volumosos, verdadeiras cachoeiras rodeando ônibus que esperavam canoas para os passageiros saírem deles. Gente ensopada tenta atravessar a rua que não se via…

Poucos devem se lembrar ou perceberam que na Região Centro-Sul, a mais chic de Belo Horizonte, num restaurante famoso invadido pelas águas, uma família de posses comemorava o aniversário de alguém e essa mesa era fartamente fotografada por nada mais nada menos que o Secretário das Privatizações do atual governo.

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Quando eu era professora de Sociologia no Básico da Universidade Federal de Minas Gerais, começávamos o curso dividindo os calouros em grupos e determinávamos o destino de cada grupo: na primeira semana de estudo, os grupos iam pelos diferentes bairros da cidade com um questionário por nós preparado.

Os estragos da chuva em Belo Horizonte – Foto Adão Souza

Depois de uma semana fazendo esta pesquisa de campo, aí voltavam os grupos e o relator de cada um apresentava aos demais os resultados do que haviam visto e ouvido em conversa com os moradores. A cortina começava a se abrir pois indo a favelas, à periferia, ou aos bairros de classe média e à regional Centro-Sul, podiam comparar como são desprezados os lugares onde moram os pobres e imediatamente atendidas as necessidades dos bairros ricos.

Passadas duas semanas, mais ou menos, a Praça Marília de Dirceu, onde fica o restaurante chic fotografado pelo Secretário das Privatizações, tudo está como era antes – ou quase tudo. Restam os corações assustados com o que passaram no fatídico dia de janeiro…

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Há 24, quase 25 anos atrás tive câncer de mama. Apavorante você sentir que “o indesejado das gentes” – parafraseando o poeta Manoel Bandeira – te pegou. Seu mundo cai a seus pés. Você fica frágil, as emoções parecem fazer de você uma vítima de alguma trágica roda- gigante que de repente te leva às alturas, depois te deixa lá no chão. Você chora, você murmura baixinho, você odeia todo mundo à sua volta que o câncer não pegou: por que logo eu?!

Tanta dona de casa que nada mais faz que levar menino no colégio ou prover seu lar do que precisa, enchendo a barriga de todos, e você, logo você, cheio de afazeres, tem de parar tudo, submeter-se a uma cirurgia que te arranca um pedaço do peito, que nunca mais será tão bonito quanto já foi um dia, e te obriga a ficar o dia todo em casa durante 33 dias seguidos para fazer radioterapia durante 5 minutos apenas, fora a fisioterapia da formiguinha, para cima e para baixo na parede procurando manter erguido seu braço operado para os músculos não atrofiarem. Humilhação assentar-se na sala de espera em meio a um tanto de gente que perdeu os cabelos da cabeça, a sobrancelha, você imagina se caiu também o pelo das partes íntimas… horror, horror, horror.

Ponto. Parágrafo.

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O astro do basquete Kobe Bryant

2020. Surge na China o coronavírus e ninguém mais fala de outra coisa. Isto é, noite e dia só se fala das chuvas em Minas Gerais, o coronavírus e depois as notícias que vão se revezando: sobre a atriz Regina Duarte que aceitou ser a Secretária de Cultura do governo do Capitão ban-ba-lão ban-ban, a morte de Kob Bryan (astro do basquete norte-americano), os foras do Ministro da Educação, as filas no INSS desde que “seu” Paulo Guedes aprovou sua milagrosa Reforma da Previdência (não aplicada até agora) e a China tão distante, tão inacessível, tão desconhecida invade sua casa e martela sua cabeça noite e dia.

“Amanse seu coração”, aconselha carinhosa sua filha-do-meio, mas você não consegue deixar de pensar nos pobres e suas misérias, e enlouquece de vez quando vê na TV uma mulher de seus 40 e poucos anos há 1 ano esperando iniciar o tratamento por radioterapia contra o câncer de mama que teve e que não consegue um aparelho de radioterapia disponível no SUS.

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Domingo, dia 9 de fevereiro do ano da graça de 2020. De madrugada, pousou no Brasil, Pátria Amada, dois aviões vindos da China com estudantes brasileiros e familiares (de alguns) deles trazidos de volta pelo Capitão ban-ba-lão ban-ban. Solícito, o Capitão não resistiu ao apelo das redes sociais e ao clamor surdo dos que dele exigiam ser obrigação do governo brasileiro “repatriar” os meninos que queriam fugir de Wuhan e da quarentena a que estavam expostos pelo governo autoritário daquela China do cafundó do Judas.

Todos “menininhos vovó”, pois quem tem dinheiro para ir fazer curso na China? Ou obter uma bolsa para tanto, duvido.

Na base militar de Anápolis onde ficarão os meninos e os que foram buscá-los por 18 dias (sabe-se lá por que 18 e não 14 dias como todos os outros países fazem) acomodações de primeira, frutas e flores nos quartos e até berços com brinquedos para bebês que eventualmente tenham vindo com seus jovens pais de lá.

Desembarque dos brasileiros na Base Militar de Anápolis – Fotos Keven Cobalchini

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Por que o governo do Brasil, Pátria Amada, tem dinheiro para buscar na China e para acolher com tanto esmero os que lá estudavam e não tem dinheiro para comprar 11 aparelhos de radioterapia que fazem falta ao SUS para atender os pobres brasileiros aqui residentes e que precisam recuperar-se de câncer de mama?

Sandra Starling é advogada e mestre em Ciência Política pela UFMG

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