O tal “Poder Moderador” dos militares: a volta dos que não foram – IV

Há procedência na interpretação de militantes bolsonaristas, segundo os quais o art. 142 da Constituição do Brasil tem o condão de conferir às Forças Armadas o papel de Poder Moderador? Numa série de artigos, o cronista faz análise histórica e jurídica detalhada deste dispositivo constitucional

Soldados na Praça dos Três Poderes - Foto: Orlando Brito

O tal “Poder Moderador” dos militares: a volta dos que não foram – III

Dia 1º de janeiro de 2003: hora de FHC passar o bastão a Lula. No “front” externo, a situação estava sob controle, como magistralmente nos revelou Matias Spektor: George Bush já havia sido convencido de que Lula não era o bicho de sete cabeças que se dizia.

No “front” interno havia mais que reticências: muita desconfiança, prevenção e precaução. No governo Figueiredo, o sindicalista Lula fora preso e recolhido ao DOPS-SP, por insistir na continuação de uma greve declarada ilegal; o petista Lula fora condenado, com base na Lei de Segurança Nacional, a três anos e meio de reclusão por ter dito, no enterro de um trabalhador rural assassinado, que estava chegando a hora de “a onça beber água”.

No governo Sarney, o SNI chegou a produzir um informe que lhe atribuía uma possível liderança na volta da luta armada no País. Lula, então, já era um potencial sucessor do presidente da República. E no próprio governo FHC, conforme revelou a imprensa, o Exército, por meio de seu centro de informações e inteligência, ainda monitoraria um Encontro Nacional do PT, realizado em Guarapari (ES), em 1995. Lembremo-nos de que FHC recebeu o apoio entusiasmado e militante de Lula, em 1978, quando aquele concorreu ao Senado pelo MDB, mas ainda era visto como um “subversivo” pelo regime militar.

Menos de uma semana antes da entrega da faixa presidencial, FHC havia editado um decreto que, tempos depois, disse que não lera ao assiná-lo… O ato cuidava de ponto sensível na questão militar. Tratava-se do Decreto nº 4.553, de 27 de dezembro de 2002, pelo qual foram dilatados os tempos de vedação de acesso a documentos cujos sigilos fossem considerados imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado.

O presidente Fernando Henrique Cardoso e seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio do Planalto – Foto: Orlando Brito

Os documentos classificados como “ultrassecretos” que, até então, deveriam ficar trancados a sete chaves por um período de trinta anos continuariam trancafiados por até cinquenta anos, podendo tal prazo ser prorrogado infinitamente. Isso mesmo, ad infinitum! Collor havia fixado o sigilo documental por um prazo máximo de trinta anos, prorrogável por igual período. Agora, praticamente tornava-se letra morta o direito fundamental à informação, insculpido no inciso XXXIII do art. 5º da Constituição.

Mas Lula, agora “Lulinha, paz e amor”, uma vez empossado, não adotou postura de enfrentamento. A marca de seu governo não parecia ser a de fazer a onça beber água, mas a de não cutucar a onça com a vara curta. De início, determinou que a AGU esgotasse todos os recursos judiciais cabíveis frente a uma decisão da 1ª Vara da Justiça Federal, em Brasília, que obrigava a União a abrir os arquivos sobre a guerrilha do Araguaia e informar o local de sepultamento dos corpos de guerrilheiros abatidos. A ação havia sido proposta em 1982, ou seja, já fazia mais de vinte anos de tramitação processual quando foi prolatada a sentença de primeiro grau! Mais tarde, determinou que documentos produzidos pelo Conselho de Segurança Nacional, pela Comissão Geral de Investigações (CGI) – criada com base no AI-1, de 1964 − e pelo SNI, durante o regime militar, fossem recolhidos ao Arquivo Nacional. Nada de relevante, porém, sobre mortos e desaparecidos, ao tempo da ditadura, constava da documentação coligida, certamente filtrada, e, então, transferida.

Em outros campos Lula também mostrou sinais de espírito colaborativo com as Forças Armadas. No início de setembro de 2004, uma sutil e despercebida adição a dispositivo da Lei Complementar nº 97, de 1999, levaria, um mês depois, a um princípio de crise institucional. No art. 13, que cuida do preparo das Forças Armadas, estabeleceu-se ser competência dos comandantes das três Armas, entre outras atividades, “o desenvolvimento de doutrina”. Mas a doutrina continuava a mesma: a da segurança nacional contra os subversivos internos, conduzidos pelo “movimento comunista internacional”. E estaria claramente estampada em nota divulgada pelo Exército, em meados de outubro daquele ano, em face da divulgação, por órgãos de imprensa, de fotos que, supostamente, retratariam a necropsia do jornalista Vladimir Herzog, morto, sob tortura, nas dependências do Doi-Codi do Exército, no município de São Paulo, em outubro de 1975. Na nota, justificava-se, sem restrições, a ação das Forças Armadas no período que se inaugurara em 1º de abril de 1964. Publicada a sua revelia, o ministro da Defesa pediu a destituição do comandante do Exército. Quem, porém, acabou caindo foi o próprio ministro da Defesa.

Futuramente, como veremos adiante, a questão da autonomia das forças para o “desenvolvimento da doutrina” voltaria a provocar dores de cabeça.

Generais Augusto Heleno e Santos Cruz, atual e ex-ministro do presidente Jair Bolsonaro – Foto: Orlando Brito

Lula tocou a vida adiante. Promoveu a política de valorização das Forças Armadas, ressignificando-as como projeção de poder nacional, no âmbito de sua “política externa ativa e altiva”. Sua decisão, em 2004, de oferecer à ONU os préstimos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica na missão de estabilização do Haiti – Minustah -, proporcionou, porém, a conformação de um verdadeiro laboratório para ações de “garantia da lei e da ordem”. Ações que serviriam de modelo para a(s) Unidade(s) de Polícia Pacificadora – UPPs. Merecem destaque as operações de pacificação, em Porto Príncipe, dos aglomerados de Bel Air e Cité Soleil, comandadas, respectivamente, pelos generais Augusto Heleno e Santos Cruz. Talvez aqueles comandantes tenham se recordado, na capital haitiana, das “rondas de cavalaria”, promovidas pelo tenente-coronel Luís Alves de Lima e Silva, no Período Regencial, quando este se tornou Comandante do Corpo de Guarda da capital do Império, que, futuramente, se tornaria a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

Luiz Inácio Lula da Silva estimulou a modernização dos meios militares – inclusive a execução de projetos sensíveis, num contexto geopolítico, como o desenvolvimento da propulsão nuclear para submarinos, a retomada do veículo de lançamento de satélites (projeto logo interrompido por uma explosão cercada de mistérios), a substituição de esquadrilha de caças, a renovação da frota de veículos blindados sobre rodas, a preparação para a guerra cibernética, tudo com base em tecnologia preferencialmente desenvolvida no País. E não se descuidou da recomposição dos valores dos soldos. Na Reforma da Previdência que havia encaminhado ao Congresso Nacional, no início do governo, cuja ênfase incidia sobre servidores públicos, evitou suscitar debates em torno da questão do desconcertante desequilíbrio financeiro-atuarial da “proteção social” de militares inativos e seus pensionistas. Contou aqui com a valorosa ajuda da Emenda Constitucional nº 18, de 1998, proposta por FHC, para livrar-se deste abacaxi. Coroando essa postura, editar-se-ia, no seu segundo governo, a Estratégia Nacional de Defesa.

Apesar do “Mensalão”, Lula logrou ser reeleito em 2006. Embalado pela renovação do apoio popular, presidiu, sete meses após a nova posse, ato oficial da Secretaria Especial dos Direitos Humanos no qual foi lançado o livro-relatório “Direito à Memória e à Verdade”, registrando os onze anos de trabalho da comissão de mortos e desaparecidos, contendo um resumo da história das vítimas da ditadura no Brasil.

General Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército do presidente José Sarney – Foto: Orlando Brito

Mas nuvens pesadas surgiriam no horizonte. Na sequência, veio a lume a notícia da existência de quinze cópias de um relatório acerca de ações de organizações políticas clandestinas durante o regime militar. Havia sido encomendado, em 1985, pelo General Leônidas Pires Gonçalves, então ministro do Exército. Seu patrono o denominara “Projeto Orvil”. Os originais nunca foram publicados, por ordem do Presidente José Sarney. Mas agora estas cópias, vindo à tona, davam a entender que, em 1985, apesar de declarações oficiais em contrário, arquivos secretos referentes ao período autocrático estavam intactos e teriam sido consultados para confecção do relatório. Já reformado, o próprio General Leônidas diria, naquele ano de 2007, que os arquivos das Forças Armadas não haviam sido destruídos. Com efeito, em informe publicado pelas três forças, em 1993 (governo Itamar Franco), quando estas foram admoestadas pelo ministro da Justiça (Maurício Corrêa), havia sinais de que documentos sigilosos sobre a situação de mortos e desaparecidos entre 1964-1985 haviam servido de referência para que informações bem sucintas – e truncadas − fossem fornecidas.

A turbulência estava se formando. Em 2008, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, pediria que o Brasil tornasse público os arquivos da guerrilha do Araguaia. Desdobramento disso foi a condenação do Estado Brasileiro, em 2010, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund e outros v. Brasil. Foi assentado que, durante o regime militar, crimes contra a humanidade foram perpetrados por agentes do Estado e que a Lei 6.683, de 1979, representara uma “autoanistia”, inadmissível no sistema jurídico internacional de direitos humanos.  Em 2009, finalmente transitaria em julgado aquela ação proposta em 1982, de cuja sentença, prolatada em 2003, recursos vinham sendo interpostos por expressa orientação presidencial. Lula determina, então, ao Ministério da Defesa criar um grupo de trabalho para dar cumprimento à decisão judicial. Esta comissão, coordenada por um oficial general do Exército, nunca conseguiu encontrar restos mortais de guerrilheiros abatidos no Araguaia.

Às vésperas do Natal de 2009 ocorreria a tempestade perfeita. O Programa Nacional de Direitos Humanos–3 acabara de ser divulgado, por meio do Decreto nº 7.037, de 2009. Dele constavam − a par de propostas arrojadas no plano dos costumes, vistas com reservas por militares, conservadores por excelência − proposições específicas desconcertantes, tais como: a supressão do papel das polícias militares como forças auxiliares do Exército; a redefinição das competências e funcionamento da Inspetoria-Geral das Polícias Militares; a recomendação de modificação da doutrina, com inclusão de Direitos Humanos como disciplina nos programas das academias militares. E o mais conflitivo: a criação de uma Comissão Nacional da Verdade e revisão da Lei de Anistia.

Nelson Jobim, ministro da Defesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – Foto: Orlando Brito

O então ministro da Defesa, Nelson Jobim, recusou-se a assinar o decreto e apresentou seu pedido de demissão. Foi acompanhado pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que também colocaram seus cargos à disposição do presidente da República. Lula resolveu pôr panos quentes: não aceitou a demissão de Jobim e dos comandantes militares. E o jogo foi combinado: o decreto seria mantido, tal como publicado, mas nada sairia do papel durante o seu governo. Particularmente no que se refere à Lei de Anistia, aguardar-se-ia o pronunciamento do STF sobre a sua inconstitucionalidade em ação proposta pela OAB. A decisão da Suprema Corte deveria significar um ponto final nessa questão. Significaria?

O tal “Poder Moderador” dos militares: a volta dos que não foram – V

Thales Chagas Machado Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG

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