O miserê do procurador e a criatividade no serviço público

Quando a democracia brasileira, na Constituição de 1988, decidiu valorizar o Ministério Público, dando-lhe poder e ganhos decentes, a intenção não era criar uma casta alucinadamente descolada da sociedade e de seus princípios de honra, decência e decoro. Foi desonroso, indecente e indecoroso o discurso do procurador Leonardo Azeredo dos Santos, em reunião com os colegas do MP de Minas Gerais. Na ocasião, ele denunciou a situação de “quase pedinte” que sua categoria passará a viver se o Estado fechar acordo de recuperação fiscal e limitar o salário dos procuradores a R$ 24 mil.

O Estado de Minas Gerais tem uma das piores situações fiscais do país. Não tem onde cair morto nem como investir o mínimo em educação e saúde para dar dignidade aos seus contribuintes, principalmente aos milhões de pobres que nem de contribuintes poderiam ser chamados se não houvesse impostos embutidos nos produtos que compram com as esmolas das ruas.

O discurso do procurador tornou-se peça valiosa em estudos sociológicos sobre a fauna brasileira. Expõe – e mata de vergonha – a natureza de uma elite tão alucinada e inventiva como Maria Antonieta. Diz o procurador, recorrendo a ironia impiedosa: “Eu, infelizmente, não tenho origem humilde. Eu não sou acostumado com tanta limitação. Talvez eu seja até mal visto porque aqui tá cheio de gente que diz que nós somos perdulários. Tá cheio de gente aqui dizendo que nós ganhamos muito, que temos de economizar. Mas é gente que não gasta um centavo, só vive economizando.”

No setor privado, o Brasil vai conhecendo as armadilhas para embolsar dinheiro do povo. São sonegações, isenções, anistias. Só no Rio de Janeiro, esses incentivos despudorados chegaram a R$ 218 bilhões em 10 anos. São cálculos do próprio Tribunal de Contas do Estado, onde a roubalheira produziu a grotesca prisão de quase todos os conselheiros por corrupção. No setor público, a corrupção desperta a ira popular, mas a sociedade ainda engole o que o procurador chamou de “criatividade” em sua aula sobre artimanhas da elite.

“Quero saber se no ano que vem nós vamos continuar nessa situação ou se V. Excia. (o procurador-geral) já planeja alguma coisa, dentro da sua criatividade, para melhorar a nossa situação. Ou se nós vamos ficar nesse miserê aí.”

Não se tem notícia de que algum colega tenha vaiado o sujeito na reunião. Nem quando ele pediu, na maior cara de pau do mundo, “qualquer tipo de vantagem que aumente nossa remuneração”. O terror do coitado é “passar o ano que vem a receber o salário verdadeiro nosso, que é relativamente baixo, sobretudo para quem tem mulher e filho.”

É claro que o procurador faz a pergunta que não quer calar diante da plateia tão sofrida: “Como é que o cara vai viver com R$ 24 mil?” E responde: “Não sei se vai ter um recálculo dos atrasados que vá salvar minha pele. Eu, de qualquer forma, já estou baixando meu padrão de vida bruscamente, mas eu vou sobreviver.”

Difícil é o Brasil seguir vivo no processo de evolução civilizatória com esse tipo de gente à frente dos assuntos públicos. Se alguém acha que o procurador se apavora tanto com o mísero salário de R$ 24 mil porque é um perdulário, ele explica que não. “Não é porque eu sou perdulário, não. É para manter o meu patrimônio, que eu conquistei ao longo de 28 anos de carreira (…) Eu sou perdulário porque eu pago R$ 4.500 de condomínio e IPTU por mês. Ao longo da carreira, eu quis ter mais condição”, diz o procurador de “Justiça”. O que ele quis dizer, supõe-se, é que quase 100% dos brasileiros vivem com menos de R$ 24 mil porque optaram por ter “menos condição” por altruísmo, desapego, evolução espiritual.

Quem critica privilégios no serviço público costuma agir por despeito, por não ter conquistado no concurso estabilidade eterna e bem remunerada, certo? Pois com o mísero salário de R$ 24 mil, o argumento não fará mais sentido. “Promotor? Quem é que vai querer ser promotor, se nós não vamos ter aumento mais? Para quê concurso? Não vai fazer mais concurso nenhum.”

Favela Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte: Miséria e violência – Foto Orlando Brito

Prepare-se para a próxima frase sincera. “O senhor me desculpe o desabafo, mas, olha, eu tô fazendo a minha parte. Eu estou deixando de gastar R$ 20 mil de cartão de crédito e estou passando a gastar R$ 8 mil para poder viver com meus R$ 24 mil reais.” Se ainda não cortou o seu coração, segure essa: “Agora, eu e vários outros já estamos vivendo à base de comprimido, à base de antidepressivo. Eu estou falando desse jeito aqui com dois comprimidos por dia. Eu tomo dois ansiolíticos por dia.”

“Alguma coisa tem que ser feita”, conspira o orador, apelando à “criatividade” do chefe. “Eu aproveito o ensejo de falar sobre o orçamento para dizer que algo tem que ser feito. Eu não sei se eu vou ter o recálculo do atrasado, mas nós vamos ficar desse jeito? Nós vamos baixar mais a crista? Nós vamos virar pedintes, quase? (…) Será que meu cargo não merece uma remuneração que eu possa pagar o colégio dos meus filhos, por exemplo? Eu só tenho um. Mas e quem tem três, vai viver com 20 e poucos mil reais?”

Ao fim do show, o procurador pede desculpas. Mas não, não foi movido por um ataque repentino de senso de justiça. “O senhor me desculpe, mas eu espero que o senhor exerça sua criatividade para aumentar (a remuneração). Não sei se o senhor previu alguma coisa aqui para melhorar. Alguma coisa de plantão, de adicional de alguma coisa, de auxílio … não sei o que o senhor fez. Eu torço para o senhor ter essa criatividade para nos ajudar no ano que vem.”

Nossa geração cresceu ouvindo que Deus é brasileiro. Que ele exerça sua cidadania e nos livre, um dia, de tanta criatividade.

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