O herói sem nenhum caráter

O benfazejo combate à corrupção precisa ser lastreado na legalidade. Mas, no Brasil hodierno, há quem se arvore de paladino anticorrupção, um Macunaíma do século 21, sem honra e sem caráter

Manifestação contra a corrupção na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, a capital da República - Foto: Orlando Brito

Quase cem anos se passaram desde que Mário de Andrade criou o genial Macunaíma, o denominado “herói sem nenhum caráter”.

Grande Otelo em “Macunaima”, filme de Joaquim Pedro de Andrade, baseado no livro de Mário de Andrade

Feio, dissimulado, mentiroso, ardiloso, malandro, esses eram alguns dos atributos normalmente atribuídos ao famoso personagem principal do livro, ícone do modernismo brasileiro. Para alguns críticos, Macunaíma seria reconhecido e identificado como personagem-síntese do caráter brasileiro.

Disposto a mergulhar na essência da nossa brasilidade, livrando-se das influências estrangeiras na literatura nacional, Mário de Andrade findou por inovar o fazer literário, seja no conteúdo, seja na forma, inventando uma nova maneira de narrar e delimitando novos espaços e marcadores temporais.

Apesar de vinculado ao momento histórico em que foi produzido, nosso herói do modernismo merece ser lembrado nos tempos presentes. A atualidade do texto é marcante.

Já faz algum tempo que a população brasileira vem sendo seduzida pela ideia personificada de um suposto herói, que, destemido, teria elegido o combate à corrupção como uma verdadeira cruzada. Estaria ele ungido pelos deuses e investido de amplos poderes, quiçá divinos, para livrar, a qualquer custo, essa maldição que teria se abatido sobre o território brasileiro.

Os meios de comunicação de massa, em sua maioria, apoiaram e incentivaram imoderadamente tal cruzada. Horas e mais horas de endeusamento diário nos noticiários televisivos conferiam cada vez mais visibilidade àquele que iria extirpar, sozinho, com uma caneta na mão, décadas ou séculos de práticas inescrupulosas praticadas por empresas sobre o patrimônio nacional.

Segundo seus apoiadores, a empreitada seria dura e envolveria sacrifícios, o que justificaria qualquer ação, mesmo aquelas que não fossem legitimadas pelo conjunto das leis do país.

Ingênuo ou malandro, ou os dois, tal qual Macunaíma, o povo brasileiro embarcou nessa toada, mal sabendo (ou sabendo?) que uma ilegalidade não pode ser consertada ou extirpada mediante a prática de outra ilegalidade. Simplesmente não funciona. O círculo não fecha. Um buraco se abre.

E se abriu.

A cisão e o ódio que marcam o cotidiano nacional revelam essa fenda. Ela há de ser fechada. Assim como a corrupção há de ser, ao menos, diminuída. Mas com verdade e legalidade.

Lamentavelmente, a verdade é que a corrupção persiste, muito embora certa figura pública nacional insista em dizer que ela acabou.

A cruzada falhou. Ou melhor, nem sequer existiu. Era fake. Tinha outros e inconfessáveis objetivos, que estamos – pouco a pouco – descobrindo. O lado dissimulado de Macunaíma.

É que o “herói” também era – e continua – fake.

Nesse ponto, nem era como Macunaíma, genuinamente nacional. As notícias agora sinalizam que foi fabricado lá fora.

Tudo indica que era importado.

Agora voltou às origens.

Boa viagem.

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