Minha sugestão de Marco Temporal

Como o STF ainda não tomou a decisão final sobre o Marco Temporal das terras indígenas, o articulista deixa aqui sua sugestão para modular o difícil imbróglio que opõe setores do agronegócio e as comunidades de índios brasilianas - ou o que restou delas

A bela canção lançada por Baby Consuelo, faz alguns bons anos, dizia tudo: “Antes que o homem aqui chegasse, as terras brasileiras eram habitadas e amadas por mais de três milhões de índios, proprietários felizes da Terra Brasilis”.

Não tinham ideia esses felizes proprietários da Terra Brasilis de que a felicidade estava com os dias contados. Não sabiam que o “caraí” vinha aí, por obra e graça do Papa Alexandre VI, que, no ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1493, resolveu lhe dar, em nome de Deus, de papel passado e tudo mais, a propriedade de toda terra de Pindorama, a Terra sem Males, que estivesse a cem léguas do arquipélago de Cabo Verde, no sentido do sol poente. No ano seguinte, o homem lusitano combinou com o homem castelhano deslocar a vara demarcatória para um meridiano ainda mais ocidental, situado a trezentos e sessenta léguas daquele mesmo arquipélago.

Índia tupinambá – Foto: Orlando Brito

Tudo mais é história: invasão, escravidão, extermínio – por epidemia, mosquetão, mercúrio ou pesticida −, esbulho. Passados mais de quinhentos anos, resta menos de um milhão de índios e hoje “o seu canto é triste”. Apenas para ilustrar: num estado que, por ironia, chama-se “Mato Grosso” do Sul os guarani-kaiowá, felizes proprietários quando “todo dia era dia de índio”, são obrigados a viver sob lonas em guetos ou à beira das estradas. O “caraí” lhes tomou toda terra. Um deles conta: “Quando os caraí chegaram, nós estávamos com a terra. Os caraí estavam com a bíblia e pediram para que fechássemos os olhos. Quando abrimos, nós estávamos com a bíblia e eles com a terra”.

Agora, só lhes resta fecharem os olhos definitivamente. Por meio do suicídio.

Mas, nos últimos dias, os caraís têm andado alvoroçados. O grande líder deles diz que estamos diante de uma ameaça de caos. É que esse famigerado STF está prestes a tomar-lhes as terras, que, um dia, eles tomaram quando os índios abriram a mão e fecharam os olhos. Tudo depende de como aqueles “capa-pretas” esquerdistas interpretarão o que significa a expressão “direitos originários [dos índios] sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, como consta do art. 231 da Constituição Federal.

Para os “caraís” só há direito originário dos índios às terras que eles efetivamente estivessem ocupando no dia da promulgação da Constituição: 5 de outubro de 1988. Em tempos de recorrência a imagens bíblicas, seria como dizer que só teriam direito à terra os povos que, como a mulher de Lot, estivessem como estátuas de sal sobre alguma gleba naquele “marco temporal”.

O argumento dos caraís é sarcástico: vamos devolver Copacabana aos índios? A esse respeito, recomendo aos nossos revoltados homens brancos, que tanto admiram os EUA, conferir a decisão da U.S. Supreme Court, prolatada no ano passado no caso “McGirt v. Oklahoma”, acórdão que, aliás, poderia auxiliar muito nossos magistrados a decidir de forma segura sobre o poder do Estado frente a territórios ocupados por povos indígenas.

Indígenas protestam em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília – Foto: Orlando Brito

Mas admito que o argumento é impactante. Proponho, então, ao STF uma solução de modulação, por mais legítima que seja a reivindicação dos povos indígenas às suas propriedades alodiais. Que tal fixar o controverso marco temporal em uma data, na qual recatadas moçoilas, em seus puritanos trajes de banho, já podiam frequentar as areias de Copacabana, sem correrem o risco de se depararem com algum silvícola transitando por ali com suas vergonhas expostas?

Sugiro que o marco temporal de verificação da efetiva posse da terra seja 20 de junho de 1910, dia em que, evidentemente, já não mais havia índios em Copacabana.

Naquela data a República reconheceu suas obrigações para com os povos originários desta Terra Brasilis. Foi quando se editou o Decreto 8.072, pelo qual foi criado o Serviço de Proteção ao Índio. Dá para levantar nos cartórios quem estava onde naquele dia em que a ordem jurídica republicana reconheceu, entre outras questões: que era preciso “garantir a efectividade da posse dos territórios ocupados por índios”; que era necessário “pôr em pratica os meios eficazes para evitar que civilizados invadam terras dos índios e reciprocamente”; que era mister “promover a punição dos crimes que se commetterem contra os índios”; e que era imperioso “promover a restituição dos terrenos que lhes tenham sido usurpados”.

São obrigações não cumpridas há mais de 111 anos e que qualquer homem branco com uma bíblia na mão tem o dever moral de reconhecer que devam ser executadas.

O antropólogo Darcy Ribeiro e o cacique Juruna – Foto: Orlando Brito

De quebra, curvando-se a esse imperativo ético, os caraís prestariam uma grande homenagem a quem o antropólogo Darcy Ribeiro considerava o maior de todos brasileiros. Homenagem oportuna, nessa quadra de tutela militar, a um homem da caserna que tinha como lema de vida “morrer se preciso for; matar, nunca”.

No dia 20 de junho de 1910 criou-se o SPI. Seu primeiro chefe seria o futuro Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon. A decisão do STF pode ser uma boa ocasião, relembrando aquela data, para se proceder a alguma espécie de reparação aos donos da Terra Brasilis.

* Advogado, Mestre em Direito Constitucional (UFMG)

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