“The Birth of a Nation”, de 1915, é um dos marcos fundadores do moderno cinema dos Estados Unidos. Um épico de três horas, que parte da Guerra Civil, passa pelo assassinato de Abraham Lincoln e culmina com a glorificação da Klu Klux Kan como a força vital da qual a nação finalmente (re)nasce, sua alma branca resgatada pelo Sul confederado, vitorioso mesmo na derrota. O filme é também um caso exemplar de como o supremacismo branco e o consequente ódio às pessoas de cor, qualquer cor que fuja de um tipo ideal ‘nórdico’, europeu, definem o ethos mais profundo da sociedade estadunidense. Ao ponto de, até hoje, a Constituição permitir, nos termos da 13ª Emenda – justo aquela que decretou o fim da escravidão, o gatilho da Guerra Civil – o trabalho escravo, desde que na forma de ‘punição por um crime cometido’. Punição que atinge em sua ampla maioria populações negras, e de homens jovens.
Não teria sido, pois, por mero acidente, que D.H. Griffith escolheu a KKK para ser o eixo do seu épico que, artística e tecnicamente, ainda durante o cinema mudo, revolucionou a forma de filmar: mais de 1.500 tomadas, quando o mais elaborado filme europeu tinha menos que 100; cinematografia de deep focus; cortes rápidos; close ups; recriação de batalhas. É certo que “The Birth of a Nation” despertou a justa ira da população afro-americana e dos militantes por direitos civis naquele início de século XX. Houve boicotes, apelou-se à Justiça, mas o filme seguiu seu caminho, até ser visto por mais de três milhões de pessoas. E, em maio de 1992 já se chegando ao século XXI, ele foi reconhecido pela Biblioteca do Congresso dos EUA como um dos mais importantes marcos culturais, históricos (sic) e técnicos da produção cinematográfica daquele país.
Fecho o nariz de cera.
No período imediatamente posterior à Guerra Civil, em 1867, duas importantes medidas foram passadas pelo governo federal. A Lei da Reconstrução, com medidas políticas e econômicas destinadas a sanar os efeitos mais destrutivos do conflito nos estados confederados do Sul. E a 15ª Emenda à Constituição, que proibia os estados de limitar o acesso ao voto por razões de raça e de cor.
Aquele foi o período da história dos EUA em que as populações negras mais presentes se fizeram na política, em estados como Mississipi, Carolina do Sul, Alabama, Luisiana, Flórida, Texas. Foram mais de 2.000 parlamentares eleitos para os legislativos estaduais; em vários desses constituindo maioria; além de 14 representantes federais e dois senadores. Mas foi um período, também, de crescentes tensões raciais, facilitadas pelo que muitos historiados chamaram de ‘compromisso infame’: a retirada, em 1877, das tropas federais dos estados do Sul, pondo fim à Reconstrução.
Retirada que foi como uma senha para o Sul dar fim ao crescente poder eleitoral das populações afro-americanas. Entre 1885 e 1908, todos os onze estados pós-confederados (Alabama, Arkansas, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Flórida, Geórgia, Luisiana, Mississipi, Tennessee, Texas e Virgínia) modificaram suas constituições estaduais e leis eleitorais, dando início ao processo que perdura até os dias de hoje, conhecido como ‘voter suppression, ou supressão dos votos. Talvez o mais infame recurso de supressão tenha sido, então, a criação de um ‘imposto do voto’.
Supostamente neutro, por ser um imposto universal, na prática ele suprimia uma vasta quantidade de votos afro-americanos, visto que seus titulares não tinham condição econômica para arcar com ele. E mais: passaram a exigir coisas como títulos de propriedade, testes de alfabetização e cédulas de preenchimento complexo, que exigiam expressivo domínio da escrita.
Uma situação que se estenderia até meados do século XX, quando, em 1964 e 1965, foram votadas, no governo de Lyndon Johnson, respectivamente a Lei dos Direitos Civis, e a Lei dos Direitos do Voto.
Durante esses quase 100 anos, o chamado Sul dos Estados Unidos sustentou o que passou à História como as ‘Jim Crow Laws’ (Jim Crow era um apelido depreciativo dado aos afro-americanos naquele tempo). Tratava-se de um conjunto de leis mediante o qual o Sul pôs em prática suas políticas segregacionistas. ‘Iguais, mas separados’ era a odiosa lógica sobre a qual se assentava esse aparato normativo racista. Aparato que, na visão de D.H. Griffith, como visto acima, só teria sido possível graças à KKK, seus enforcamentos, armas e cruzes queimadas.
Aparato que, com outras roupagens legais, pasme-se, mesmo passados mais de 50 anos da Lei dos Direitos Civis e dos Direitos dos Votos, faz com que o racismo eleitoral resista nos EUA dos dias de hoje, como reflexo do racismo estrutural que atravessa todo o corpo social daquele país, para além dos estados originais do Sul confederado.
São leis que embaralham os requisitos de identificação do eleitor na hora do voto; são contracapas nos envelopes a serem enviados pelo correio, que podem levar, e em geral levam, à anulação de votos de minorias; são coisas absurdas, como fechar escritórios do Departamento de Veículos Motores em bairros de maioria negra, para dificultar a aquisição de carteiras de habilitação, o mais usado documento de identificação nas zonas eleitorais. E assim vai.
Porém, o mais eficiente método de supressão de votos utilizado hoje pelo Partido Republicano é o ‘gerrymandering’, um sofisticado sistema de recortar e redesenhar distritos eleitorais que lhe são tradicionalmente desfavoráveis, com emprego de dados eleitorais e outros bancos de dados relevantes, além de GPS e inteligência artificial. Com isso, conseguem manter artificialmente suas maiorias parlamentares nos legislativos estaduais, e enviar maior número de representantes e senadores para Washington.
Se, no começo do século XX, Hollywood, com “The Birth of a Nation”, abençoou o racismo de D.H. Griffith, os tempos mudaram, e a Califórnia se tornaria, já nas primeiras décadas daquele século, um grande agrupamento ‘liberal’, algo próximo à social-democracia, que vota consistentemente Democrata, condição que compartilha com a cidade e o estado de Nova Iorque.
Não obstante, esses dois polos econômicos, políticos, tecnológicos e culturais continuam a ser fundamentais para que os Estados Unidos exportem para o resto do mundo o ‘sonho americano’, o American Way of Life, assentado sobre dois pilares principais: o do consumo em massa, inclusive dos próprios bens culturais – cinema, música e televisão -, e o da imagem da ‘América’ como a grande avalista da democracia no mundo ‘ocidental’, desde que, praticamente sozinha (sic), venceu a Segunda Guerra Mundial. Sem ela, a ‘América’, teríamos caídos nas garras de Hitler, Mussolini e Hiroito. Narrativa que ganharia renovada dimensão de hegemonia no biênio 1989-1990, com a queda do Muro de Berlin e a auto imolação da União Soviética. Tinha-se chegado ao fim da História.
O que me traz ao ponto final do meu argumento sobre o caráter largamente mítico da democracia ‘americana’: o Colégio Eleitoral.
Neste século, já aconteceram cinco eleições presidenciais nos EUA: três vencidas pelos Republicanos (W. Bush, em 2000 e 2004; Donald Trump, em 2016); duas vencidas pelos Democratas, ambas por Barack Obama; em 2008 e 2012. Mas, dos dois Republicanos, só W. Bush venceu o voto popular: em 2004, ainda na esteira dos atentados de 11 de setembro de 2001, e da invasão do Iraque. Pois Al Gore bateu Bush em 2000; Obama não deu chances a John McCain e Mitt Romney em 2008 e 2012 respectivamente; e Hillary Clinton venceu Trump.
O título original deste artigo era 537 votos, pois este foi o total de votos que fez de W. Bush o 43º presidente dos EUA. Numa eleição literalmente fraudada na Flórida, cuja recontagem de votos foi interrompida pela Suprema Corte, a derrota concedida por Al Gore, num gesto que até hoje deixa gosto amargo nos eleitores do Partido Democrata. Continuasse a recontagem, Gore venceria. A eleição seria judicializada pelo Republicanos, e isto é o que fez a Suprema Corte interromper o processo, em nome de ‘um mal menor’, sob o beneplácito da liderança Democrata. Mas, o título poderia muito bem ter sido 77.744 votos: a diferença de Donald Trump sobre Hillary Clinton em 2016, em três estados: Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, que lhe garantiram a eleição.
Em resumo, nos Estados Unidos do Colégio Eleitoral a eleição nunca é de fato nacional. O país está dividido em ‘estados vermelhos’, que tendencialmente votam em candidatos Republicanos; e ‘estados azuis”, que votam nos Democratas. Entre esses, existem os ‘swinging states’, aqueles que tendem a ‘balançar’ entre um partido e o outro.
Embora este não seja um cenário exato, pois variações entre vermelhos e azuis ocorrem entre uma eleição e outra, o que de fato pesa para os partidos são os principais colégios eleitorais. Os que, por critério de total da população, concentram mais ‘eleitores’, os que escolhem o vencedor, ou vencedora, na eleição que vale: a indireta. Candidatos Democratas mal fazem campanha na Califórnia e Nova Iorque, os dois maiores colégios eleitorais. São estados consistentemente azuis. Republicanos mal pisam nos antigos estados confederados do Sul, e outros do Meio Oeste, e do Sudeste, em especial no chamado Cinturão da Bíblia. Porque o voto que importa não é o popular.
Por isso, quem porventura esteja acompanhando a eleição nos EUA hoje ouve falar muito da Pensilvânia, e de Michigan e Wisconsin. E Flórida. Estes são os campos de batalha da atual eleição. Pesquisas eleitorais dizem que Joe Biden lidera nos quatro. Mas, e se eles balançarem como em 2012? Biden poderá até ganhar o voto popular de lavada. Basta que Trump faça um só voto a mais em cada um desses estados, e estará reeleito.
Se tem um tema, portanto, e por fim, sobre o qual os Estados Unidos não podem se arvorar a dar lições para o mundo é sobre o seu sistema eleitoral. Excludente, porque, na essência, ainda largamente racista; e excludente porque limita, ao ponto do absurdo, a soberania do voto popular.
Murilo César Ramos é jornalista e Professor Emérito da Faculdade de Comunicação da UnB
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