Pode parecer surreal, mas a cena que passo a descrever aconteceu de fato. Era a primeira vez que eu visitava Berlim. O muro havia caído fazia pouco mais de duas décadas.
Encontrava-me na praça de alimentação de uma loja de departamentos, situada na Alexander Platz, bem no centro de Berlim Oriental, antiga capital da República Democrática da Alemanha (DDR), a chamada “Alemanha comunista”. Precisei ir ao toalete e, lá chegando, deparei-me com um quadro inusitado. Todas as cabines estavam livres, mas havia uma enorme fila de senhoras, em óbvio estado de necessidade, assim como eu. Aguardavam, estoicas, algum tipo de autorização, não sabia dizer de quem ou de onde, para avançar.
Como ninguém se mexia e eu estava, mesmo, “apertada”, tomei a iniciativa de adentrar uma das cabines, percebendo que minha atitude gerara um espanto geral entre minhas parceiras no desconforto.
Retornando à mesa, comentei o ocorrido com meu marido, que já havia vivido na Alemanha. Ele, então, explicou-me: “Você está em Berlim Oriental. Não reparou no estilo ‘cafona’ de roupas dessas senhoras? São todas, como dizem por aqui, “osti”, isto é nasceram e viveram na antiga DDR”. E arrematou: “Estavam simplesmente esperando a zeladora do toalete retornar para receberem a orientação quanto à cabine a ser ocupada”.
Naquele momento a minha ficha caiu. Percebi que o muro de concreto já havia se esfarelado, mas ainda existia um muro invisível, incrustrado nas almas das pessoas. Pessoas que nasceram sob o totalitarismo nazista e, depois, viveram sob o totalitarismo stalinista só poderiam ser comportar, como bem compreendeu Herbert Marcuse, regidas pelos signos da “eficiência, da ordem, da correta execução”.
Esse senso de obediência acrítica, talvez, deite suas origens em tempos mais remotos e seja mais amplo do que se possa imaginar. Do contrário, o “Alternativa para a Alemanha”, partido populista de extrema-direita em ascensão, não estaria presente, como já está, em todos os parlamentos regionais, ainda que sua fortaleza se encontre nos territórios da antiga DDR.
Rosa Luxemburgo achava impossível que uma revolução pudesse acontecer na Alemanha como um todo, enquanto os operários fizessem passeatas limitadas às calçadas, para não atrapalhar o trânsito, Ignácio de Loyola Brandão, quando morou no lado ocidental de Berlim, ainda dividida pelo muro, registrou a esdrúxula cena de um “punk”, em plena madrugada, aguardar, quase que em posição de sentido, o semáforo de pedestres irradiar a luz verde para que pudesse atravessar a rua.
Voltando à loja de departamentos da Alexander Platz. Dali saímos rumo à Postdamer Platz, onde ainda há uma parte do muro, passando pela Leipziger Strasse, rua que as gerações mais jovens devem conhecer como cenário de uma das peripécias de Jason Bourne, interpretado por Matt Damon, quando, na película, estava em “Moscou”. No meio do caminho meu marido me mostra o local onde, em 1953, milhares de “ostis”, revoltados contra o arrocho salarial, desafiaram tanques soviéticos com pedradas.
E, em seguida, passando-me o celular, mostra-me o poema que um então morador de Berlim Oriental, Bertolt Brecht, ainda comunista, mas desencantado, fez para marcar seu protesto contra a supressão das liberdades, naquela ocasião:
“Depois da revolta do dia 17 de junho/o secretário da Liga de Escritores/Determinou que fossem distribuídos panfletos na Avenida Stalin/Nos quais se podia ler/Que o povo, por sua falta, havia perdido a confiança do governo/E que só poderia reconquistá-la se passasse a trabalhar em dobro/Não teria sido mais fácil para o governo/Dissolver o povo e escolher um outro?”