A erupção de protestos de cunho identitário-racialista em vários países ocidentais nas últimas semanas teve, como um dos seus desdobramentos, a derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston (1636-1721) em Bristol, Inglaterra.
Não deixa de ser positivo o fato de os ingleses entenderem, por pouco que seja, o protagonismo do seu próprio país na escravidão moderna. Porém, o envolvimento inglês na escravidão vai muito além da figura de Colston. Caso queiram fazer “justiça histórica”, nos termos que propõem para tal, os manifestantes ingleses deveriam destruir o seu país como um todo. Ao contrário do que diz a historiografia anglófila, que situa a Albion como baluarte do abolicionismo e o iberismo como repositório exclusivo da escravidão, a escravidão moderna e a ascensão política, econômica e ideológica da Inglaterra estão intimamente associadas.
Como o historiador Laurentino Gomes muito bem coloca no volume I do seu livro Escravidão, a Inglaterra fora a maior traficante de escravos no século XVIII, e a própria rainha Elizabeth I (1558-1603) era sócia do primeiro grande traficante inglês, John Hawkins. Próceres do liberalismo inglês, como John Locke e Thomas Malthus, estiveram intimamente associados à escravidão: Locke era acionista da Royal African Company, constituída com o objetivo único de traficar escravos, e Malthus era professor da universidade da East India Company, de forte participação no comércio de cativos na África e na Ásia. Como é amplamente sabido, a Revolução Industrial inglesa dificilmente teria ocorrido sem o fornecimento, à indústria têxtil deste país, de algodão cultivado por escravos no sul dos EUA. Na Guerra de Secessão, o Reino Unido manteve-se oficialmente neutro, embora grande parte da aristocracia britânica apoiasse os confederados, pró-escravidão.
Além de tudo isso, o escravismo inglês não vitimou apenas os povos africanos e asiáticos, mas o próprio povo inglês. Como expõe o pensador alemão Karl Marx no livro I da sua obra magna O Capital,uma lei do primeiro ano de reinado de Eduardo VI, em 1547, determinava que uma pessoa que se recusasse a trabalhar se tornaria escrava de quem a houvesse denunciado por vadiagem. Eram permitidos todos os castigos físicos e todas as práticas ocorrentes na escravidão de negros ao sul do Equador. Esse é um exemplo de que a escravidão nunca foi um fenômeno estritamente racial, ao contrário do apregoado pelo identitarismo racialista.
O psitacismo de setores políticos brasileiros ditos progressistas não tardou em demandar, por meio de redes sociais como o Twitter, a derrubada e a vandalização de monumentos históricos do nosso País, como estátuas da Princesa Isabel, de Getúlio Vargas, do Duque de Caxias, de Borba Gato e do Monumento aos Bandeirantes. Segundo tais setores, as personagens históricas homenageadas seriam equivalentes a Edward Colston e simbolizariam o racismo e a escravidão.
Não restam dúvidas, pelo menos entre os minimamente esclarecidos e bem-intencionados, do absurdo e da desonestidade de exigir, a pretexto de luta antirracismo, a derrubada das estátuas da Princesa Isabel e de Getúlio Vargas. Ela assinou a Lei Áurea, sempre se identificou com o abolicionismo, cercou-se de abolicionistas negros como André Rebouças e José do Patrocínio e apoiava a criação de um Fundo de indenização para os negros libertos, no âmbito de uma reforma agrária em favor deles. Vargas, a seu turno, desfez grande parte do legado de desigualdade e subdesenvolvimento da escravidão ao criar inúmeras leis trabalhistas e sociais, promover a educação e a saúde públicas e estimular a industrialização e o desenvolvimento das regiões mais precárias. Também legalizou a capoeira em 1937 – como ele disse em 1953, a capoeira era o único esporte verdadeiramente brasileiro. Já na década de 1930, seu governo tirou o samba da marginalidade a que até então se encontrava para elevá-lo a ícone cultural da brasilidade, financiando inclusive as escolas de samba cariocas. A derrubada das estátuas da Princesa Isabel e de Getúlio Vargas, então, atende a interesses oligárquicos, antinacionais e racistas, não aos interesses nacionais e populares. De que lado estão os nossos pretensos combatentes antirracistas?
Se as obras da Princesa Isabel e de Getúlio Vargas para o fim da escravidão e do seu legado e para a construção do Brasil soberano e justo são razoavelmente conhecidas do grande público, o mesmo não se dá em relação ao Duque de Caxias e aos bandeirantes. Isso facilita a depredação da memória desses construtores da Nação, edificada em monumentos que, frequentemente, são alvos da fúria identitária.
Grande parte da historiografia e do ensino de história retrata o Duque de Caxias como mero opressor do povo paraguaio, ignorando a responsabilidade de Solano López pela deflagração da Guerra do Paraguai, bem como o fato de Caxias ter sido, ainda muito jovem, um dos principais combatentes da Guerra de Independência contra os portugueses na Bahia, onde as batalhas foram mais dramáticas. Também colaborou para manter a unidade nacional ao reprimir, durante a Regência, revoltas separatistas comandadas por oligarquias locais. No caso da Farroupilha, alforriou, em 1845, os negros que participaram seja de um lado ou de outro, contrariando instruções recebidas do Gabinete Liberal, que determinavam o envio à Corte dos escravos que fizeram parte das tropas rebeldes, provavelmente para se tornarem propriedade imperial. Caxias, além de combatente da Independência e da unidade nacional – sem as quais seria impossível abolir a escravidão e superar o seu legado de subdesenvolvimento -, também foi um dos primeiros a colocar em prática o abolicionismo.
Da mesma forma, essa historiografia e esse ensino de história retratam os bandeirantes como meros predadores de índios e esmagadores de quilombos, pintando-os nas cores sombrias de “brancos, racistas e misóginos”, ignorando ou escondendo a enorme contribuição dada por eles às configurações territorial e demográfica do Brasil.
Foram os bandeirantes os responsáveis por estender, a partir de São Paulo, as fronteiras brasileiras além do Tratado de Tordesilhas, adentrando o continente e preenchendo-o de Brasil.
A magnitude do esforço humano empreendido por eles revela-se no exemplo da marcha de 12 mil km conduzida por Raposo Tavares entre 1648 e 1652, após ele ter combatido os holandeses entre 1639 e 1642. Tendo alcançado os Andes, atravessou Rondônia, chegou ao rio Amazonas pelos rios Mamoré e Madeira e, por meio daquele, aportou em Belém. A interiorização das fronteiras e do povoamento contrapôs-se à lógica colonial e escravocrata de concentração populacional e econômica no litoral.
Enquanto o escravismo e o colonialismo limitavam o Brasil a sua costa marítima e a uma posição geoeconômica subordinada à metrópole de além-mar e aos circuitos comerciais por ela estabelecidos no Atlântico, o bandeirantismo, ao explorar a continentalidade brasileira e mapear as condições geográficas dos sertões, perfurou os próprios limites coloniais de Tordesilhas – anulados somente durante a União Ibérica (1580-1640) – e abriu caminhos alternativos aos escravistas e atlantistas para a formação brasileira, interiorizando o povoamento e as rotas de comércio.
O Tratado de Madrid, firmado em 1750, ao seguir o princípio do uti possidetis,reconheceu como território brasileiro grandes porções de terra a oeste que haviam sido incorporadas ao âmbito brasileiro pela ação desbravadora dos bandeirantes. Esse tratado, ao substituir o de Tordesilhas e pôr termo às disputas entre Portugal e Espanha pela delimitação das fronteiras na América do Sul, institucionalizou a obra bandeirante e a incorporou, de uma vez por todas, à formação da nacionalidade brasileira.
O bandeirantismo, além de contribuir para a definição da base territorial brasileira, também foi central para definir a identidade mestiça do nosso País. O perfil indígena e mameluco das bandeiras em tudo contrasta com a falsa visão de que seria um fenômeno eminentemente branco e racista. A sociedade paulista, de onde surgiram os bandeirantes, apresentava grande influência indígena e pouca distinção entre brancos e mamelucos.
Desse modo, o bandeirantismo representou a ocupação do continente e a formação do Brasil pela massa mestiça. Como escreve o historiador Boris Fausto em seu livro História do Brasil, “o número de mamelucos e índios sempre superou o dos brancos. A grande bandeira de Manuel Preto e Raposo Tavares que atacou a região do Guaíra em 1629, por exemplo, era composta de 69 brancos, 900 mamelucos e 2 mil indígenas” (p. 83).
A formação do tipo sertanejo e a correlata ocupação do Vale do São Francisco, espraiando-se pelas adjacências, também são devidas ao bandeirantismo, como registra Euclides da Cunha em Os Sertões. Esse grupo, amplamente considerado um dos mais representativos da brasilidade, originou-se da migração dos paulistas para aquela região, desde o século XVII, e sua simultânea miscigenação com os indígenas locais, fazendo despontar “logo uma raça de curibocas puros quase sem mescla de sangue africano, facilmente denunciada, hoje, pelo tipo normal daqueles sertanejos” (p. 190)[1].
Consequências indiretas do bandeirantismo também foram cruciais para a formação histórica brasileira. A exploração de metais preciosos em Minas Gerais, cujas jazidas haviam sido descobertas pelos bandeirantes, propiciou o deslocamento do eixo político, econômico e demográfico do Nordeste para o Centro-Sul. Também gerou alguma articulação entre pontos distantes do Brasil, como o adensamento do comércio entre Bahia e Minas e entre ambas e o Sul.
Desse modo, o Brasil estruturou-se como Nação antes mesmo da sua Independência, que foi a culminância de um processo histórico de integração nacional, tanto física quanto social, forjada, em grande parte, pelo bandeirantismo. O vasto território e a unidade psicossocial brasileira pela mestiçagem, que devemos aos bandeirantes, são recursos nacionais de poder indispensáveis à edificação de uma Nação coesa e econômica e socialmente
Os ataques à memória dos bandeirantes, de Caxias, da Princesa Isabel e de Getúlio Vargas e aos monumentos que a simbolizam nada mais são, portanto, do que ataques ao Brasil e à sua unidade, à sua história e ao seu povo. O identitarismo racialista, do qual se revestem os vândalos e seus defensores, propugna o divisionismo étnico em vez da união patriótica, enfraquecendo a capacidade da Nação de atingir seus objetivos autênticos. Atenta contra a centralidade da Questão Nacional e a importância da história e dos valores pátrios, visando liquidar as bases de um projeto nacional à altura das nossas potencialidades.
Os ingleses que se resolvam sozinhos com o seu passado de potência escravocrata, se assim quiserem. As figuras históricas brasileiras mencionadas nada têm a ver com Edward Colston, servindo, então, como referenciais para a emancipação nacional brasileira. Os monumentos que as homenageiam devem ser preservados e reverenciados como marcos da construção nacional, sem a qual não é possível o verdadeiro e necessário combate ao racismo e ao legado da escravidão no Brasil.
Felipe Maruf Quintas é mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF)