A humanidade de Vladimir Putin. Esta é a revelação estética mais importante do documentário-entrevista realizado com o líder russo pelo cineasta norte-americano Oliver Stone. A série de quatro capítulos, gravada em diversas locações na Rússia entre 2015 e 2016, chega ao Brasil três anos depois da estreia mundial. Foi exibida em julho último no canal de Youtube do blogue Nocaute, do jornalista, escritor e político Fernando Morais, exibido pela TVT, legendado por Paulo Bezerra, o tradutor mais importante do idioma russo da atualidade, dentre os quais Feodor Dostoiévski e Mikhail Bakhtin.
O autor, Oliver Stone, é um dos principais cineastas dos Estados Unidos, detentor de três Oscar, a principal premiação daquele País, “metteur em scène” de obras-primas pacifistas como Platoom, Nascido em 4 de Julho e Expresso da Meia Noite.
Nessa obra, Stone trabalha como cineasta (embora o conteúdo seja jornalístico), conseguindo em meio a uma entrevista fazer seu personagem expressar-se emocionalmente. Para isto, trabalha com muito talento a arte da filmagem, captando os olhos, os olhares e as expressões faciais em “close ups” muito bem apanhados. Esse chamado “plano americano”, do busto, é a essência da arte cinematográfica. Além do conteúdo do discurso do personagem, é a emoção que dá as informações mais importantes. Neste enquadramento a humanidade de Vladimir Putin se sobrepõem aos temas que estão na pauta. Este documentário continua válido como informação quatro a nos depois de gravado, por seu conteúdo humanista sobre a pessoa do líder russo. Os assuntos tratados já são públicos há anos, mas a pessoa do presidente ainda é uma revelação a quem assiste pela primeira vez, como o público brasileiro.
Jornalisticamente o documentário não seria uma obra relevante, exibido em 2020. É uma obra datada e focada. Fica evidente que ele se dirige ao público norte-americano médio que tem uma ideia e uma opinião, sobre sua pessoa, seu país e sua política, formada por uma mídia hostil. Então, habilmente, o líder russo não faz revelações bombásticas, ataques contundentes a seus rivais, ou proposta relevante. Ao contrário, Putin é ameno, educado, muito condescendente com os norte-americanos a quem prata por “partnior”, uma palavra que, em russo, fica entre parceiro (sócio) e camarada, traduzida por Bezerra ora como “amigo” ora como “aliado”. A expressão do entrevistado é amigável, mostrando-se divertido em certos momentos, seguro noutros, mas nunca irritado ou enfático, mesmo quando trata se assuntos espinhosos. Sempre são seus “partniors” que estão por trás de situações embaraçosas, que, uma a uma, o governo de Putin vai absorvendo com boa vontade pacifista, na versão apresentada por Oliver Stone.
Percebe-se claramente que Putin é um homem sofisticado, que tem uma cultura humanista ampla e sólida, que não é um político troglodita, como se o traça na narrativa da mídia ocidental, comparando-o a Nicolás Maduro ou outros líderes populistas do tipo Donald Trump. Pelo contrário: ele fala de seus relacionamentos com os presidentes dos Estados Unidos, tanto como primeiro-ministro como quando presidente da república. Lembra de seus contatos pessoais com Ronald Reagan, os dois Bush (pai e filho), Bill Clinton e Barak Obama, deixando escapar que os dois se tratavam pelos prenomes, Barak e Vladimir, o que só é possível num dialogo tête-à-tête, sem interpretes. Putin, além do inglês, fala diretamente com Ângela Merkel, em alemão (morou em Berlim quatro anos) e com Emmanuel Macron, em francês. Ou seja: é um poliglota.
Com suas expressões que ele “passa” (na linguagem cinematográfica), Putin dá credibilidade a afirmações de outra forma inacreditáveis. Ele se coloca como uma político de nova era, distante dos estadistas toscos do passado, como Josef Stalin e Harry Truman, que se deixaram levar para uma disputa perigosa, insuflados por um belicista como Winston Churchill (ele não diz assim , mas claramente dá a entender que o líder britânico, criador da expressão Cortina de Ferro, envenenou seus colegas soviético e norte-americano). Ele se refere à “guerra fria” como uma página virada na História. Isto fica claro e subentendido quando Putin deixa muito claro, ao se referir à sua cidade natal, mudando o nome: nos tempos da União Soviética, a designa como Leningrado; mas quando está nos dias atuais, é são Petersburgo. Para o bom entendedor…
Mikhail Gorbatchov e Boris Iéltsin, os políticos que comandaram o país no tempo de ascensão de Putin, ele trata com condescendência. Seriam estadistas despreparados, embora tivessem entendido os tempos em que viveram. Ou seja, as reformas políticas e econômicos, a Glasnost e a Perestroica, eram necessárias, mas foram levadas a cabo sem um plano, sem uma compreensão clara dos objetivos finais. Essas reformas somente vieram a dar certo depois, com a nova geração de políticos, dentre os quais ele se inclui. Isto está claro no patético discurso de despedida de Iéltsin, ao lhe passar o poder, reproduzido por Stone.
Já ele, Putin, embora não se descuide dos desafios da defesa, se diz um homem destes novos tempos, voltado para o reerguimento econômico da Rússia, preocupado com as desigualdades, tal como um país em desenvolvimento (aliás, a Rússia, ao lado de Brasil, Índia, China e África do Sul, forma o bloco de países emergentes, o BRICS).
Há muito o que falar sobre essa obra. Melhor será o leitor acessar o blogue Nocaute e baixar seus quatro episódios, com uma apresentação muito simpática do jornalista e escritor Fernando Morais, contanto como conseguiu os direitos sem gastar um centavo. Coisa de amigos. Morais e Oliver Stone se conheceram em Cuba e, desde então, nunca mais perderam contato. Por isto ele agradece ao cineasta e também a seus produtores, Maximilian Arvelaiz, David Tang e Fernando Sulichin, que liberaram o filme para o Brasil, quatro anos depois da estreia mundial, em 2017.
O filme de Oliver Stone, retrancado como “Putin-Oliver”, semelhante a outro clássico, também identificado pela retranca “Frost/Nixon”, relembrando a célebre entrevista do ex-presidente norte-americano Richard Nixon, em 1977, que caiu como uma bomba no meio cinematográfico e da televisão. Naquele ano, o ex-presidente deposto deu uma entrevista ao jornalista inglês David Frost que valeu por seu conteúdo dramático, a começar pela frase que aterrou a opinião pública e marcou historicamente o acontecimento, quando Nixon declara em alto e bom som: “Eu decepcionei o povo americano”. Essa matéria é narrada num filme do cineasta (roteiro e direção) Ron Howard, baseado na peça de teatro do inglês Peter Morgan, protagonizado pelos atores Michael Sheen e Frank Langella.
O filme de Oliver Stone tem o mesmo potencial. Apenas com sinal contrário. A obra de Ron Howard apresenta Nixon como um homem derrotado e vencido por seus erros; no “Putin-Oliver” o russo aparece como um líder em crescimento contínuo, mesmo depois de 20 anos no poder, entrando na Historia como autor de um projeto gigantesco, que é o relançamento de uma superpotência, soterrada nos erros de seu passado trágico, embora politicamente relevante. A Rússia de Putin é o contrário da América de Nixon. O filme mostra isto, com seu conteúdo muito bem focado no interesse da opinião pública americana. Essa obra muda a percepção do povo dos Estados Unidos sobre seu rival euroasiático.
A produção é esmerada e se destaca por sua simplicidade. Dois homens conversando, com alguns poucos insertes de fatos históricos mencionados. Entretanto, os cenários ao redor completam a informação, mostram o ambiente em que vive o presidente da Rússia, cercado de obras de arte e os mesmos prédios relíquias. Ali o esplendor demonstra que Putin é o chefe de um estado com longa trajetória na História da humanidade. Tal qual a China, que ao reemergir no cenário mundial, se expõe como herdeira de uma história de 5.000 anos. Assim é a Rússia que se projeta dos encontros entre Putin e Oliver, nos anos de 2015 e 1016, antes da última reeleição do russo e pouco depois da posse de Donald Trump. Ou seja: é um filme muito bonito visualmente. A opinião pública americana ficou impactada pela revelação de seu rival. Mesmo quatro anos depois, vale a pena assistir de novo, procurando ver além das palavras, nos detalhes da obra cinematográfica de um dos mais importantes artistas da história da chamada sétima arte.