Está lá no inciso XIV do art. 5º da Constituição: “É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Essa redoma jurídica, que recobre quem detém uma informação sensível e tem por profissão exatamente divulgar informações ao público em geral, busca proteger, por óbvio, os jornalistas.
Ante a absurda tentativa do Ministério Público de processar e punir o periodista Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, responsável pela divulgação de diálogos entre os protagonistas da “Operação Lava Jato”, somos obrigados a revisitar a origem desse dispositivo constitucional.
Confesso, já um pouco enfastiado, que precisamos, para tanto, bater às portas da história do direito constitucional norte-americano. Para nossa sorte, neste caso, não é necessário muito esforço nesse sentido.
Tom Hanks e Meryl Streep, em suas brilhantes interpretações em The Post – A Guerra Secreta (2017), já nos ajudaram bastante. Em breve síntese, eis o enredo: em 1971, Daniel Ellsberg, servidor do Pentágono, vaza, ilegalmente, para o New York Times e o Washington Post documentos ultrassecretos do Pentágono sobre o envolvimento dos EUA na guerra do Vietnã. O filme cuida das idas e vindas, na seara judicial, para que fosse assegurado o direito de tais informações serem publicadas. E a história termina com o assentamento, pela maioria da Suprema Corte dos EUA (6×3), do precedente, segundo o qual um jornal pode publicar informações, ainda que obtidas ilegalmente, sem necessidade de revelar sua fonte.
Em outras palavras, Daniel Ellsberg poderia, sim, ser processado e julgado por seus atos, manifestamente ilegais, mas os jornalistas do NYT e do The Post, não. O teor desse julgado histórico é que veio plasmar o referido dispositivo da nossa Constituição de 1988.
Em uma inteligente sacada do diretor do filme, o genial Steven Spielberg, a película termina, na sequência dos episódios de 1971, por revolver na memória do espectador os eventos que, pouco mais tarde (1972 a 1974), se sucederiam, com a invasão − com a aquiescência, ou, quiçá por ordem, do então presidente dos EUA, Richard Nixon − do escritório do Partido Democrata no edifício Watergate. Dois jornalistas do The Post, Bob Woodward e Carl Bernstein, noticiariam, com base em informações obtidas por uma fonte por eles denominada “Garganta Profunda” (Deep Throat) – referência a um famoso filme pornô da época – o envolvimento direto da Casa Branca naquela ação criminosa.
O resto da história é conhecido: ameaçado de impeachment, Nixon renunciou ao mandato presidencial e os dois jornalistas jamais precisaram declinar o nome de quem, ilegalmente, lhes havia passado as evidências da trama delituosa articulada no seio da Presidência da República. A identidade de Garganta Profunda só foi conhecida pouco antes de sua morte, mais de trinta anos depois do affair Watergate. Em 2005, aos 91 anos de idade, William Mark Felt, vice-diretor do FBI no governo Nixon, confessou que ele era a Garganta Profunda.
Acostumados − como estamos a ficar − a bater continência para tudo o que vem do Grande Irmão do Norte, custa-me crer que um procurador da República desconheça como a Suprema Corte dos EUA determinou devesse o Poder Judiciário daquele país lidar com a liberdade de imprensa. Aquele precedente foi a súmula originária que acabamos por copiar em 1988.
Mais ainda: ao ficar sabendo que o douto membro do Ministério Público, além da formação jurídica específica, frequentou uma academia militar, cuja doutrinação é tida em elevada consideração, meu espanto cresce. De toda maneira, o ilustre acusador parece desconsiderar, no caso Glenn Greenwald, a advertência de Gomes Canotilho, renomado constitucionalista português: “Saber história é um pressuposto ineliminável do saber constitucional”.
Em tempo: Daniel Ellsberg jamais foi punido por sua conduta. O processo criminal em seu desfavor acabou sendo arquivado, sem julgamento de mérito, ao ficar evidenciado que o FBI, ao investigá-lo, agiu abusiva e ilegalmente, grampeando suas conversas telefônicas e violando o consultório de um psiquiatra, a fim de obter dados sobre o histórico de Ellsberg como paciente daquele profissional.
Ademais, viera a público a informação de que o juiz do caso, no curso do processo, encontrara-se com um assessor de Nixon (que acabou na cadeia por causa de Watergate) e que este lhe havia oferecido, para após o desfecho do processo, a direção do FBI. Interessante, não?
São coisas que já aconteceram nos EUA e que, na expressão de Paulo Nogueira Batista Júnior, “prepostos medíocres e subservientes”, no Brasil, via de regra, desconhecem ou fingem desconhecer. Afortunadamente, temos Tom Hanks, Merryl Streep e Steven Spielberg para nos relembrar.
* Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG