O meu artigo anterior, A Vingança da Província, sobre a centenária decadência econômica e política do extremo sul do País, provocou aplausos, críticas, reparações e, em particular, a vontade de seguir escrevendo sobre o tema. Bem feito para vocês!
A minha memória, para justificar eventuais simpatias conscientes ou não, que me atribuíram ao governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, puxou uma antiga tese de mestrado (que não concluí por não a ter começado), na UnB, sobre as relações fisiológicas entre jornalistas de Brasília e as suas fontes. Demasiadamente visíveis para serem refutadas.
De resultados fartamente lamentados pelos leitores todos os dias.
Achei que defendia, com minha indisciplinada ironia e baixo humor trocadilhista, a tese do oportunismo descarado a favor da cidade de Pelotas, que é a nossa “amante argentina”, por quem perdemos a cabeça, o dinheiro, os cavalos e as vergonhas.
Tipo isso: já que nos últimos 100 anos não veio para nós nada igual a onda política que o Eduardo poderá provocar, agora, já em 2021, vamos nela surfar? Por que não? A gente chama de oportunidade histórica, toma um banho de loja e segue em frente.
Eduardo é pelotense confesso e Xavante raiz. Conheço o pai dele, o multiprofessor Marasco, desde menino. Integramos um grupo de macróbios exibidos que tem descoberto, nos últimos tempos, velhas e boas histórias sobre nossos conterrâneos e quebradas da cidade.
O grupo não tem portaria ideológica. Se tivesse, não teria produzido o resultado fantástico que tem alcançado.
Marasco chegou a ser professor de música do Kledir Ramil, um dos nossos talentos, o que não é pouco. Os irmãos K&K nos prestigiam com a presença e curiosidade de historiadores.
Sei que a proximidade pode ser ofuscante, para qualquer tipo de análise.
Como não sou mais jornalista em atividade, há muitos anos, procuro me colocar como um cronista acidental, que já viveu o suficiente para não ter medo de contar uma história.
“E eu não posso cantar como convém. Sem querer ferir ninguém. Mas não se preocupe, meu amigo. Com os horrores que eu lhe digo. Isto é somente uma canção.” (Homenagem à família Belchior, de Pelotas.)
Aqui eu opino, relembro, especulo e distorço a vida vivida e a não vivida como o som daquela velha guitarra que nunca toquei.
É minha jam session, onde misturo o que eu quiser.
Se o amigo foi ferido, desculpe-me qualquer coisa.
Às favas as regras carcomidas dos manuais de redação, que ensinam a escrever mal e a viver as razões e éticas alheias.
Não mais compromissos formais com veículos e instituições; só a irresponsabilidade do que sai da cabeça esquecida e confusa.
Ventos negros, fog pelotense, céus brasilienses
Sobre a penumbra do nosso secular esquecimento regional, sobrevirão os holofotes cegantes da fama e do prazer da notoriedade, penso alarmado comigo mesmo, sobre o que poderia acontecer no sul e em Brasília.
Chega de dançar no escurinho do cinema dos outros.
Soltamos a franga do pensamento.
A epifania do acadêmico
Algumas ponderações educadas (“bolsonarista disfarçado!”, por exemplo) fizeram-me desconfiar que me tornara um personagem a ser estudado pela minha própria tese, o amor “argentino” dos repórteres por alguém na iminência de chegar à Presidência da República.
Neste caso, paixão precoce, já que os obstáculos são muitos, altos e os cavalos estreantes.
Achei que fui transformado no repórter que se fere com os fatos para não estressar interesses e sentimentos secretos.
Vou revidar com abobrinhas históricas.
1987. Eu “devia” uma tese no Mestrado da UNB há uns sete anos. O orientador, professor Murilo Ramos, me deu a última chance junto ao Serasa acadêmico.
Um estudo de campo a ser realizado na campanha presidencial do ano seguinte, 1988. Eu acreditei que os dois anos de mandato que tiraram do José Sarney era para valer.
Preparei incríveis questionários para os jornalistas que acompanhariam os principais candidatos a Presidente, os chamados setoristas – a fina flor do chá de banco em puxadinhos improvisados.
A humilhação maior ainda não chegara aos cercadinhos.
Na tese final, eu deveria provar que, à medida em que um candidato se aproximasse do poder, os jornalistas ficariam mais dengosos em relação a ele.
Se alguém, em 87, falasse em “fator Collor”, seria mandado direto para o hospício. Elle não estava no horizonte possível e identificável.
Mas o “centrão”, bem remunerado, retomou para Sarney um dos anos “afanados” por FHC, Mário Covas e Ulysses Guimarães. A eleição foi transferida para 1989, eu fui para São Paulo, minha tese foi para o lixo da história e as candidaturas de uns 10 partidos foram inviabilizadas pela contaminação sarneysista.
No início de 1989, porém, eu voltava pela terceira vez ao Jornal do Brasil para participar da cobertura presidencial. Uma das primeiras matérias intitulava-se “O Fenômeno da pré-campanha”. Foi publicada em 14 de abril de 1989.
Coube-me fazer a entrevista com o personagem principal.
Sim, era ele, o super-homem do Nordeste, Fernando Collor de Mello, o incrível, o improvável e imbroxável (ele tinha 39 e não 66 anos).
Uns meses antes, um cearense tímido abordara o governador de Alagoas, Collor, no aeroporto de Brasília. Era seu ex-colega de colégio, Álvaro Lins, o Alvinho, que apenas dois anos antes havia deixado a clandestinidade política, que o levou à luta armada nos loucos 68, e a usar codinomes e disfarces.
Os dois eram filhos de parlamentares nordestinos. Álvaro pai era do MDB e Arnon de Mello era da Arena.
Brasília não tem esquina ideológica que não possa ser dobrada.
Em 86, Ulysses Guimarães assinou a ficha de Collor filho do PMDB.
Alvinho tinha fundado uma empresa de call center, pioneira, para tentar trabalhar na eleição presidencial, também praticamente inédita para todos.
Sem espaço empresarial no PT, onde tinha ficha de fundador, Alvinho obteve de Lula uma carta de corso para abordar candidatos de qualquer bandeira.
Na avaliação deles, Collor não chegaria a 7 (sete) %, no máximo dos votos finais.
A empresa do ex-guerrilheiro foi instalada num prédio do empresário Luiz Estevão, na Asa Norte, outro contemporâneo de ensino secundário, membro e financiador da direita collorida.
Alvinho chamou quadros de esquerda para preencher o miolo da empresa. Afinal, não havia qualquer risco de dar certo, na visão petista.
Passou por lá, por exemplo, o jornalista Franklin Martins, num intervalo entre empregos.
O coordenador das equipes, vejam leitores, que cidade pequena, era o meu orientador, Murilo Ramos, também canhoto confirmado.
Murilo e Alvinho me chamaram para assistir no escritório as primeiras manifestações, por telefone, dos telespectadores no espaço de televisão cedido a Collor pelo Partido da Juventude.
Afinal, o fracasso da candidatura estava garantido.
Como um aprendiz de Perón, sem ameaças maiores, Collor organizava sua direita e esquerda.
No poder, logo depois, o Partidão iria em bloco para o governo. Zélia Cardoso de Mello no comando. Em 92, já no declínio, Ciro Gomes e FHC, vestidos de noiva, foram abandonados no altar colorido por pressão de Mário Covas.
A matéria no JB daria a todas minhas concorrências, internas e externas, a certeza que eu tinha acesso ao círculo íntimo (ah, eu sei, mestre J. Pinho, pode ser entendido como outra coisa!) da campanha e, para o Alvinho, o merchandising para acesso a novas clientelas, desde que não fosse o PT.
Nos primeiros minutos da fala do carismático cara de pau, com a tela indicando um número para as ligações, os telefones explodiram, as atendentes enlouqueceram e o meu orientador, apavorado, entre o branco, roxo e o vermelho, me falou solenemente:
“Estamos vivendo um fenômeno histórico. Não são mais sete por cento!”
Era abril de 1989. A eleição só seria em novembro.
Vieram outras vozes em altos tons. Uma delas: “Quem foi que deixou um repórter entrar aqui”.
Nunca mais pude frequentar a intimidade daquele bunker Collor peronista.
Amores embalsamados
Ao chegar aqui, tenho a forte impressão que nada esclareci. No mínimo, temos uma boa história. Quase virgem, pois não a li em outros lugares.
Porém, tenho a certeza que não verifiquei em todos os lugares.
Muita gente tem feito paralelos entre a candidatura de Eduardo Leite e a de Fernando Collor. Tirando a juventude e a ousadia, há muito pouco a comparar concretamente.
Se chegar à presidência, hipoteticamente, no ano que vem, um sonho ainda lisérgico, o gaúcho terá três anos a menos que o então governador alagoano, neto de um gaúcho, que tinha recém-inaugurado os 40 anos. Eduardo parece um projeto para a próxima rodada.
Eu nunca olhei para o Eduardo Leite de perto. Quando saí de Pelotas, ele ainda não havia nascido.
Quando fiz a entrevista com Collor [fac-símiles nesta página], a bordo do jatinho do usineiro João Lyra, na companhia do jornalista e assessor Cláudio Humberto, ele tinha o olhar dos que tem um pensamento fixo. Um pouco assustador.
O professor José Luís Marasco Cavalheiro Leite confidenciou-me que o filho tem um só projeto: a presidência.
Quando revelei minha impressão aos companheiros de bar e de lutas esquerdistas na primavera de 89, em Brasília, que Collor poderia surpreender e vencer, quase fui linchado pela companheirada.
A seguir, em agosto de 1989, eu havia assumido a editoria de Política do Jornal da Tarde, do grupo Estadão. Um mês antes do primeiro turno, houve uma eleição simulada entre os funcionários dos dois jornais, da Agência Estado e da Rádio Eldorado.
Deu Mário Covas (PSDB). Em seguida, vinham Ulysses, Leonel Brizola, Roberto Freire, Lula, Paulo Maluf e Afif Domingues. Não sei se Aureliano Chaves, Ronaldo Caiado e Enéas Carneiro pontuaram. E se o José Nêumanne e os membros da família Mesquita, dona da empresa, votaram.
Fernando Collor arrasou entre os não jornalistas, radialistas, fotógrafos e outros artistas. A turma da limpeza, cafezinho e portaria votou “nelle” em massa, sem fazer alarde e análises profundas.
Conselho sábio: esqueçam em quem os jornalistas votam e deixem de sofrer.
Não chorem por eles, argentinas.
(Alerta ao consumidor. Frase de efeito sem sentido mas com certa musicalidade.)
Obs.: o hoje brilhante historiador Laurentino Gomes era o editor de Política do Estadão, naquele famigerado ano.
Não durou muito por lá. Saber muito a história do País atrapalha o serviço.
Eu fui demitido, na prática, durante o segundo turno presidencial, mas só mandado embora no início do governo Collor.
Minha missão, passada pelo Fernão Mesquita, no segundo turno presidencial, foi: “Temos que foder com o Lula”.
Nunca ouvi uma síntese tão perfeita da linha editorial da casa.
Não fiz nenhuma força para agradá-lo.
A síndrome do embalsamador
O espanhol Pedro Ara era embalsamador. Sua maior obra foi o cadáver de Evita Peron. A morte de Evita foi em 1952. Seu cadáver foi enterrado só em 1976, depois da volta de Perón à Argentina e da sua morte no poder.
Desde que Pedro Ara se apaixonou por Evita mumificada seu cadáver também despertou a paixão em militares argentinos, que o sequestraram e o enterraram clandestinamente na Itália.
Ela era amada viva e, muito mais, morta, pelos descamisados.
Ela ficou sumida até voltar, no mesmo avião, com Perón, Isabelita, a nova primeira dama, e o bruxo José López Reg, para a Argentina.
No poder já em crise, El Brujo tentou, através de estranhos rituais, transferir a alma de Evita para o corpo de Isabelita. Não deu certo, sabe-se com certeza.
Os setoristas presidenciais brasileiros também têm a síndrome do embalsamador, embora a essencial diferença de mitos.
Apaixonam-se por suas múmias plastificadas. Fazem loucuras em nome de paixões cegas e alucinadas por personagens patéticos.
Alguns chegam a tentar, com sucesso, a tal transfusão de espíritos.
Alerta: não tentem repetir a experiência na frente das crianças.
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