A ponte para o desmonte

Jair Bolsonaro - Foto Orlando Brito

Jair Bolsonaro, expelido do Exército por ameaças terroristas de estourar quartéis, recorreu novamente a métodos extremistas para tentar explodir o Estado Democrático de Direito e governar com autoridade monárquica, sem o desconforto da crítica ou decisões divergentes dos Poderes Legislativos e Judiciário. Fez uma aposta muito alta, além da sua capacidade cognitiva e da munição estocada no paiol.

Ecoou um chamamento prolongado para a sublevação e muitos recursos – públicos e privados – foram usados para mobilizar uma súcia de mercenários desmiolados. A adesão foi muito aquém da estimada e o fiasco baixou a moral da tropa. Buscava, mas não obteve, nem de longe, o consentimento social para o golpe. Depois do fiasco, sobram para ele a prisão, a morte, o impeachment ou a previsível derrota eleitoral.

Ao esticar demasiadamente a corda, com o único propósito de blindar a si e os filhos de punições das delinquências sob investigação, o capitão atingiu o ponto sem retorno, comportamento comum a todos os presidentes brasileiros que, no passado, viram seus mandatos abreviados a partir de isolamentos políticos irreversíveis. Na trágica e sobressaltada história brasileira recente, 4 mandatários foram apeados do poder, em circunstâncias diversas, em função de um adensamento do isolamento político, causado pelo desespero e erros táticos. Getúlio Vargas por suicídio, Jânio Quadros por demência e Fernando Collor de Mello e Dilma Roussef por meio do impeachment. O que une Collor e Dilma é que ambos, além do desprezo pela interlocução institucional, não souberam identificar em qual momento perderam o controle político e a capacidade de reverter o processo de afastamento.

Roberto Jerfferson, preso

Ao convocar manifestações para rupturas institucionais, pregar abertamente a desobediência a decisões judiciais e conspirar contra o funcionamento dos demais Poderes da República, Bolsonaro apostou no aprofundamento da crise e no mergulho cego nas mais aterradoras catacumbas do autoritarismo. Perdeu feio. O desespero golpista é fruto dos inquéritos no rastro do clã, da queda vertiginosa nas intenções eleitorais, do salto nas estatísticas de rejeição e desaprovação da gestão, da erosão da imagem desencadeada pela CPI da Pandemia, da ruína econômica (inflação, desemprego, fome, PIB em queda) e da prisão das cavalgaduras que serviram de biombo no desafio aos Poderes no passado.

O deputado Daniel Silveira e Roberto Jefferson são os estandartes mais conhecidos da quartelada. Se transformaram sentinelas de celas fétidas a espera de comparsas para dividir os cubículos imundos.

Ministros Luiz Fux, Roberto Barroso e Alexandre de Moraes – Foto Orlando Brito

As reações institucionais às ameaças golpistas e ao crime de responsabilidade cometido por atentar contra o funcionamento dos demais Poderes, misturou a timidez do deputado Arthur Lyra, presidente da Câmara, e uma nota do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. De outro lado houve uma enérgica declaração do presidente do STF, Luiz Fux e do presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, com uma manifestação equilibrada, tecnicamente densa, analítica e politicamente procedente. Tanto Fux quanto Barroso chamaram o Congresso às suas responsabilidades. Em pouco mais de dois anos transgredindo, Jair Bolsonaro tem contra si 136 pedidos de impeachment, um recorde histórico.

O que também deixou de ser dito pelo Procurador Geral da República, em tese o fiscal da lei, no dia posterior à convocação de Jair Bolsonaro na defesa da desordem, do caos e do desrespeito à Constituição é mais relevante do que foi declarado pelos dois ministros do STF. Desde a redemocratização do Brasil, mesmo nos momentos mais críticos de afastamento de dois presidentes eleitos, nunca o chefe da Nação apostou tão irresponsavelmente na divisão do país e no confronto, inclusive físico, entre os seus apoiadores e os poderes legitimamente constituídos. A pacificação, esperada em todos os governantes eleitos, é escarnecida por um inconsequente, mal-intencionado e de índole fascista.

O posicionamento mais enfático, vindo do Judiciário na defesa da Democracia, e o tom institucional exibido pelos presidentes do Senado e da Câmara dos reafirmam o comportamento que caracteriza toda a crise. O Judiciário não arredou o pé e demonstrou, em reiteradas ofensivas, não se intimidar com as bravatas despóticas de Jair Bolsonaro. Ao contrário, reage sempre aumentando a pressão. Desde o início da pandemia, com reiteradas intimidações contra o STF, a Suprema Corte preserva o curso das investigações, sem recuos, e impõe derrotas sucessivas ao governo. O estoque de reveses de Bolsonaro no outro lado da Esplanada já ultrapassa 30 derrotas.

Os desdobramentos da insanidade bolsonarista são todos desfavoráveis. A palavra impeachment, independente de sua viabilidade numérica e duração do processo, voltou ao cotidiano do Parlamento; as tentativas de rotinas legislativas foram ameaçadas; o STF e outras instâncias do Poder Judiciário se obrigaram a uma coesão interna mais sólida contra Bolsonaro; as empresas perderam R$ 200 bilhões em valores na bolsa; o setor produtivo, com raras exceções, vai alargar o descolamento; as forças políticas mais lúcidas se afastarão; os eleitores de Bolsonaro sentem-se como bois de piranha, abandonados à própria sorte. O ano de 2021, que já era perdido, foi encerrado 4 meses antes do calendário oficial. A credibilidade do chefe da Nação nos sistemas presidencialistas é o capital político mais relevante e Bolsonaro o perdeu completamente no dia 7 de setembro, notadamente em seu nicho.

A indigência política atual, a crise de autoridade, o vácuo da credibilidade é tão aterrador que o ex-vice, Michel Temer, foi exumado da insignificância para vender-se ao País como como guardião da Democracia. Teria redigido e convencido Bolsonaro a divulgar uma carta inconfiável de recuo, fazendo um suposto armistício com o ministro Alexandre de Moraes, indicado ao STF por ele. A carta contém 1751 mil caracteres da mais cínica dissimulação, charlatanice, impostura e da matéria prima de toda sua trajetória: a mentiras está em cada 1 dos 10 itens da carta. O capitão é o único responsável pela divisão do país, ao contrário do que alegou e, teve sim, a intenção deliberada de agredir os demais Poderes. Quem conspira há mais de um ano contra a harmonia entres os 3 Poderes atende pelo sobrenome Bolsonaro e inúmeras vezes já bravateou o mesmo golpe.

Ao contrário do que sustentou o trapaceiro, não há divergências ou conflitos de entendimento sobre as decisões do ministro Alexandre de Moraes no inquérito das fake news. Existem decisões judiciais e prisões contra as quais o clã Bolsonaro ameaça se insurgir delinquentemente. Quem estica a corda o tempo todo e não permite que se viva em paz é Bolsonaro e sua tropa de vigaristas e velhacos. Não há nada derivado do “calor do momento”, como ele, argumentou. É tudo pensado. E mal pensado. Ele preparou, convocou, discursou, chamou ministros e sobrevoou os atos golpistas. Nada indica um rompante, um rasgo de desequilíbrio. Os fatos revelam um planejamento caviloso. A defesa da democracia, disposição ao diálogo, contida nos itens finais da tal carta à Nação, são hipocrisias retóricas, desmentidas pelos espasmos golpistas e reincidentes coices de sua cavalaria na democracia.

O ex-presidente Temer e Jair Bolsonaro – Foto Orlando Brito

O missivista mesoclítico, Michel Temer, foi um dos arquitetos da maquinação “constitucionalizada” que culminou com o afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff. Para perpetrar a anomalia inventou-se até um crime para empossar o mentor da outra carta, igualmente embusteira, uma tal “ponte para o futuro”. Um documento superficial, vago e pretensioso com soluções e diagnósticos equivocados. Em uma de suas linhas, intoxicadas pelo objeto político já desenhado, derrapava em inverdades: “O Brasil encontra-se em uma situação de grave risco”. Com a crise duradoura do governo Temer, engolfado por um mar de lama, todos os 12 itens da tal ponte para o futuro se esfarelaram e o Brasil empoçou. Soçobramos em repetidas crises econômicas, sociais, políticas e, agora, bem mais grave, institucionais, escarnecidas pelo próprio Temer em convescotes despudorados com a elite paulista.

Os pais, padrinhos e padrastos dessa perversão política e da ruína administrativa atual são múltiplos. A Lava Jato, associada a movimentos políticos de direita e manipulando ou associada a setores da mídia, é a maior responsável pelo desastre brasileiro atual. A tocaia jurídica abjeta, tramada nas catacumbas do Judiciário e do Ministério Público, afastou o candidato favorito nas pesquisas, abrindo a avenida para inaugurar um projeto fascista no Brasil, que só ruiu pela própria incompetência. Os responsáveis, agora, tentam somar as migalhas de intenções de votos. Na grande maioria das pesquisas os nomes vinculados a uma ilusão, batizada de terceira via, não somam as intenções de votos atribuídas ao segundo colocado.

Na Esplanada dos Ministérios, manifestação contra Bolsonaro – Foto Orlando Brito

O caos materializado na gestão Bolsonaro é um filho bastardo de uma delinquência coletiva e dolosa, com reflexos mortais na vida dos brasileiros. Muitos o repelem e agem para apagar a digital, mas não conseguirão se eximir da responsabilidade histórica pelo maior flagelo político, social e administrativo do país. Os escombros econômicos se somam à anarquia institucional, ao golpismo reiterado, o boicote à ciência, às mortes da Covid-19 e a erosão de todos os valores civilizatórios. Uma vertigem aflitiva que exigirá muito tempo para ser consertada. Todos os movimentos que estão fracassando impiedosamente nas ruas são responsáveis pela edificação dessa tragédia: a ponte para o desmonte.

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