A CPI da Pandemia vai caminhando para reta final dos trabalhos com um indiscutível legado político, institucional, social, sanitário e, sobretudo, civilizatório. Instalada em 27 de abril, foram 5 meses hemorrágicos para a condução obscurantista de Jair Bolsonaro, o pior chefe de Nação do mundo no enfrentamento da mais devastadora pandemia de todos os tempos. Os resultados do trabalho de investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito vão desde o sepultamento de convicções medievais até a evisceração de corrupções sistêmicas no Ministério da Saúde nas transações delinquentes de aquisição de vacinas e outros contratos malcheirosos.
Instalada por imposição do STF – derrota emblemática de Bolsonaro no Judiciário – a Comissão tinha, inicialmente, um escopo sanitário, já que não constava especificamente no fato determinado a malversação de recursos. Muito rapidamente a CPI se deparou com um farto material probatório contra o governo no enfrentamento da pandemia. Os primeiros temas atacados foram celeremente esclarecidos e os responsáveis identificados. Dessa maneira a Comissão conseguiu fôlego e tempo para avançar em temas éticos, cobrança de propinas e um festival de outras irregularidades nas negociatas de imunizantes.
Nas apurações sanitárias os senadores da Comissão rapidamente comprovaram a existência de um gabinete paralelo de governo e, portanto, clandestino. Uma excrecência ilegal e inédita. Um grupo de pseudocientistas não se limitava a aconselhar o Bolsonaro, mas descaradamente formulava políticas públicas responsáveis pelo morticínio dos brasileiros sem nenhuma investidura em função pública. Há diversas gravações, reuniões e depoimentos desse grupo infame defendendo teses sepultadas pela ciência, como a imunidade de rebanho e a prescrição de medicamentos comprovadamente ineficazes no combate a Covid-19 e com graves reações adversas, como cloroquina, ivermectina e outros venenos.
Foi possível à CPI comprovar a farra dos laboratórios no aumento exponencial do faturamento com remédios inúteis para Covid-19 incentivados irresponsavelmente pelo garoto propaganda Jair Bolsonaro. Até a abertura da CPI, o capitão obscurantista já acumulava mais de 200 declarações negacionistas e anticientíficas contra as medidas não farmacológicas (uso de máscaras, isolamentos sociais e higiene pessoal), contra as vacinas, a favor de medicamentos ineficazes e com ataques irracionais aos Poderes que divergiam das suas crenças medievais.
Também ficou sobejamente comprovado que o Estado Brasileiro foi instrumentalizado para ajudar a matar seus compatriotas. O Itamaraty fez um verdadeiro garimpo mundial em busca de matéria prima para aumentar a produção da cloroquina. O laboratório oficial do Exército foi orientado a aumentar a produção desse medicamento e o próprio capitão atuou pelo desembaraço da cloroquina importada da Índia por dois laboratórios, patrocinando interesse privado valendo-se da condição de chefe de governo, ato gravíssimo que pode caracterizar advocacia administrativa. A cloroquina também era o remédio único para Covid-19 recomendado pelo aplicativo lançado por Eduardo Pazuello em Manaus, o maldito Tratecov.
A tragédia de Manaus, onde brasileiros foram abandonados à própria sorte para morrer asfixiados em um experimento macabro, é a mais estarrecedora de todas as investigações da CPI. O despreparado Eduardo Pazuello, vendido falsamente como especialista em logística, deixou faltar oxigênio na cidade apesar de alertado previamente e retardou as providências que evitariam as cenas dantescas de covas, estriadas às centenas, que se eternizaram na memória nacional e nos envergonharam, de novo, diante do mundo. O laboratório da morte aconteceu enquanto a sepulcral comitiva do Ministério da Saúde priorizava reuniões e ofícios recomendando a prescrição de cloroquina. Um bando capitaneado por uma médica, apelidada de capitã, desqualificada e doutrinada ideologicamente.
Capítulo eloquente da indigência brasileira na pandemia é o das vacinas. Relatos, documentos e testemunhos mostram que o Brasil poderia, assim como o Reino Unido, ter tido um pioneirismo mundial e iniciado a imunização em dezembro de 2020. Ofícios e depoimentos à CPI mostraram a oferta de vacinas da Pfizer e do Instituto Butantan no final do ano passado. Igualmente, a documentação reunida comprova um deliberado e mortal atraso na aquisição de vacinas de laboratórios tradicionais. No caso da Pfizer foram consumidos meses com desprezo às ofertas, indiferença a pedidos de audiência e até desculpas esfarrapadas (‘vírus em computador’) para tentar justificar o injustificável. O imunizante da Pfizer só chegou aos braços dos brasileiros depois de mais de 80 expedientes ignorados e 330 dias depois da primeira oferta.
O mesmo roteiro macabro se repetiu nas tratativas com o Instituto Butantan, responsável pela contenção inicial da expansão do vírus. Foram sete meses de acidentadas negociações, sempre atropeladas pelo instinto obtuso do capitão de fancaria. Depois de Pazuello anunciar uma primeira aquisição de 46 milhões de doses da vacina, o capitão desautorizou publicamente a compra invocando sua autoridade assassina. O atraso foi fatal para muitos brasileiros.
Durante suas vadiagens ociosas pelo país, espalhando vírus e estimulando aglomerações, Bolsonaro desqualificou os imunizantes cinicamente. A CPI pôs um freio no comportamento genocida de Bolsonaro e obrigou o governo a correr contra o tempo perdido por causa da ignorância e do descaso. Ainda hoje há escassez de vacinas e os brasileiros pagaram e pagam um alto preço em vidas pela total incompetência do seu mandatário.
O governo só boicotou vacinas de laboratórios tradicionais e com esquemas rígidos de fiscalização para evitar promiscuidade entre agentes públicos e privados. As intermediárias de vacinas, meros atravessadores sem expertise no segmento, tiveram a vida facilitada nos escaninhos oficiais, até mesmo aquelas que não representavam vacina alguma, como a inesquecível Davatti e seus representantes torpes e caricatos. Apesar de não estarem credenciados para negociar qualquer vacina, o depoimento de um dos “representantes” da empresa serviu para exibir régua moral dos mais altos escalões do Ministério da Saúde em plena pandemia. Desprezo pela vida e amor à propina. Está eternizada na cabeça dos brasileiros a propina de 1 dólar por vacina.
O vergonhoso escândalo da empresa Belcher do Paraná, dos amigos do líder do governo, Ricardo Barros, é emblemático no balizamento da agilidade ou morosidade, conforme o padrinho. Em nota pública a empresa disse que não contou com a intermediação de Barros para tratativas no Ministério da Saúde. Uma foto, do dia 15 de abril de 2021, mostra Ricardo Barros ao lado de um dos executivos da empresa com o ministro Marcelo Queiroga. Em 12 de maio, a Belcher pediu uma audiência ao ministro para tratar das vacinas CanSino. Depois de rarefeitas tratativas, mensagens e reuniões, o Ministério da Saúde manifestou o desejo de adquirir 60 milhões de doses do imunizante no dia 4 de junho. Apenas 24 dias depois do primeiro contato da Belcher, o governo brasileiro já estava pronto para uma compra bilionária U$ 17 dólares a dose. A mais cara de todas elas. A CPI abortou a compra e a Belcher foi descredenciada pelo laboratório produtor. Agora se sabe o motivo do pânico demonstrado pelo governo com o inquérito parlamentar e todo o esforço para impedir a sua instalação.
Nos escândalos da vacina, a Precisa Medicamentos recende no pântano malcheiroso. Empresa sem nenhuma experiência nesse ramo de negócios, com capital social de apenas R$ 500 mil, sem empregados e cujo proprietário foi denunciado pelo MP, beliscou, sem justificativa técnica ou explicações legais, um contrato de R$ 1,6 bi para intermediar a compra do imunizante indiano, a Covaxin. Francisco Maximiamo, autor da proeza, é um parceiro antigo de Ricardo Barros. Quando o deputado Barros mandava no Ministério da Saúde, Max – alcunha do empresário – conseguiu a façanha de vender ao governo remédios que não representava e ainda obteve o pagamento antecipado de perto de R$ 20 milhões. Nunca entregou um comprimido e, por isso, responde por improbidade ao lado do amigão Barros.
O passivo delinquente de Max nem sequer foi lembrado pelo Ministério da Saúde que o brindou com um contrato bilionário para não fazer absolutamente nada. A Covaxin foi pedida por Bolsonaro em carta ao primeiro-ministro indiano. Na mesma data, Bolsonaro ignorava, desqualificava ou “cagava” para as 170 milhões de doses ofertadas pela Pfizer e Butantan. Optou, sem explicações, por míseras 20 milhões de doses de uma vacina ainda em desenvolvimento e ignorada pelo mundo. Apesar de todas as negociações, documentos oficiais, mencionarem o preço unitário de 10 dólares, ela foi vendida ao Brasil por 50% a mais, 15 dólares. Nenhuma dose foi entregue, houve pedido de pagamento antecipado em paraísos fiscais, falsificação de documentos e outras 20 ilegalidades encontradas pela CPI.
A Covaxin também foi objeto de pesadas pressões por parte de altos escalões do Ministério da Saúde para conferir agilidade à importação e pagamentos antecipados. Um dos servidores, acompanhado do irmão deputado, relatou as ilegalidades ao próprio Bolsonaro, que nada fez apesar de prometer providências. Na conversa, segundo testemunho do deputado Luiz Miranda, Bolsonaro atribuiu o esquema ao líder Ricardo Barros. Além de amigo de Max, Barros foi o autor da emenda que permitiu a importação da vacina indiana e andou fazendo discursos hostis à Anvisa, que, á época, colocava severas restrições à Covaxin. Como a vergonha é ilimitada, o Brasil só rescindiu o contrato com a Precisa depois do escândalo estourar na CPI e o laboratório indiano descredenciar a representante no Brasil.
Outras investigações da CPI acabaram por atalhar contratos superfaturados assinados nos porões do Ministério da Saúde. Um caso emblemático é da VTC Log, que conseguiu um contrato de distribuição milionário e aditivos igualmente milionários. O caso foi exposto pela CPI como um símbolo da corrupção dentro do Ministério a serviço de interesses políticos. Um dos motoboys da empresa tinha como rotina fazer saques milionários em bancos de Brasília, que chegavam a R$ 400 mil. Além de atípicos, o mesmo funcionário da empresa contou que, além de sacar valores em espécie, pagava muitos boletos na boca do caixa. Ao invés de pagar diretamente os boletos no caixa, ele sacava o dinheiro e, em seguida, quitava vários boletos em dinheiro. Expediente clássico para desvincular o pagador do beneficiário.
Na reta final a CPI ainda se defrontou com experimentos macabros tendo como cobaias seres humanos. Evocação funesta das experiências com humanos durante o 3 Reich, onde eram testados remédios, limites de resistência na busca da idiotia batizada de eugenia. Uma operadora de saúde de São Paulo desenvolveu experimentos criminosos utilizando os medicamentos inúteis. Os experimentos foram enfaticamente incensados pelo capitão Bolsonaro e seus filhos. Mortes em série e outras aberrações foram expostas pela Comissão Parlamentar que, nesse quesito, remete a apuração para a Assembleia Legislativa de São Paulo e para o Ministério Público. Pelo terror descrito, pela consistência das provas e depoimentos, muita gente, certamente, vai parar na cadeia.
Independente das consequências jurídicas a partir do consistente conjunto probatório reunido pela CPI, é imprescindível reconhecer que sua atividade fiscalizadora foi bem-sucedida e se coloca entre mais importantes para a democracia brasileira. Além de recordes de audiência, da interação social, da reconexão do Senado com as ruas, a CPI desvendou trapaças e falcatruas, sendo responsável por verdades escondidas que chegaram ao conhecimento da sociedade e rapidamente corroeram a imagem do capitão e do governo. A percepção da existência de corrupção no governo implodiu o falso discurso ético do bolsonarismo. A partir do funcionamento da CPI todos os índices de avaliação da gestão atual desmancharam e enfraqueceram as teses extremistas. O fracasso do circo golpista no 7 de setembro é, sem dúvida, o maior saldo político da CPI da Pandemia. No campo civilizatório há mais vitórias: a preservação de vidas, o soterramento do negacionismo, o aumento da vacinação e a inviabilização de compras suspeitas. É um legado histórico.