Já falamos da complacência do establishment com Jair Bolsonaro. As elites, a mídia, os setores empresariais reagem com inusitada benevolência a atitudes desse governo que, tomadas em outras eras, seriam escândalo puro. Ao que parece, embora intimamente arrependidos, muitos dos responsáveis pela eleição do atual presidente não querem dar o braço a torcer — até porque alguns, como o mercado, até poucos dias atrás continuavam ganhando um bom dinheiro. Vamos ver a partir de agora.
Mas esse tipo de comportamento “compreensivo”, sobretudo quando se trata de temas relativos a posturas políticas e institucionais — não mexam com lucros e impostos para os ricos que as coisas mudam de figura! — vem corroendo a cada dia mais a democracia. No último desses episódios, vimos o uso político escancarado do futebol e da TV Brasil pelo governo, na transmissão do jogo da seleção brasileira contra o Peru, em Lima, durante a qual Jair Bolsonaro foi elogiado e ganhou “abraços”.
Não estão claras ainda as bases do entendimento da Secom/TV Brasil com a CBF para transmissão da partida, e é mais do óbvia a estratégia do governo de incomodar a TV Globo naquela que é sua galinha dos ovos de ouro, a transmissão esportiva. Os detalhes disso ainda virão à tona. Mas o que já veio, de forma escandalosa, é o uso da TV Pública para favorecer o presidente da República.
Na linha do que já vem fazendo em relação aos investimentos publicitários, hoje distribuídos sem qualquer critério de mídia técnica, premiando as emissoras com comportamento mais amigável em relação ao Planalto, o governo sobe mais um degrau anti-republicano e passa a usar a máquina de comunicação pública sem qualquer desfaçatez. Foi um primeiro passo, segundo a mídia um “teste”, e tudo indica que a TV Brasil, a agência Brasil e outros veículos da rede da EBC passarão a ser usados como instrumento político na campanha de reeleição de Jair Bolsonaro — que já começou.
Estamos, sem dúvida, diante do uso indevido de recursos públicos pelos detentores do poder, que deveriam sujeitar os dirigentes da empresa a acusações por crime de improbidade administrativa e quebra do princípio constitucional da impessoalidade. Como disse em artigo Tereza Cruvinel, primeira presidente da EBC, a mídia tradicional e o Ministérios Público fiscalizaram incessantemente cada passo da recém-criada TV Pública, e cada vírgula de sua programação, durante os anos dos governos Lula e Dilma. Naquela ocasião, nunca se ouviu falar de um gesto sequer — quanto mais um “abraço”– de simpatia ou subserviência da estatal àqueles governantes em suas transmissões.
Agora, porém, a situação exige providências enérgicas não só das autoridades de fiscalização e investigação, como o Ministério Público, mas da própria sociedade — que, ao fim e ao cabo, é a verdadeira proprietária de uma TV Pública. Estamos cansados de ler nos livros que, nos dias de hoje, as democracias são corroídas por dentro, sem necessidade de golpes de força, pelo enfraquecimento de suas instituições e o esgarçamento de valores que as sustentam. Há um ano e nove meses estamos assistindo esse espetáculo ao vivo — e muitos de forma passiva. Que o uso acintoso do aparelho de comunicação estatal sirva para despertá-los de sua benevolência.