Muitos são os desafios para conduzir a Justiça e a segurança na governabilidade de esquerda neste governo lulopetista. Flavio Dino distancia-se, felizmente, dos fundamentalistas na esquerda, aqueles que não parecem descartar totalmente ações típicas ainda neles presentes, decorrentes da crença na ditadura do proletariado. Como Ministro Flávio necessita unificar seu exército e incorporar soldados de outros exércitos ao seu. Mas isto tem sido feito a contento? Não creio, a julgar pelo dito e não dito sobre o atentado na escola de Blumenau, equiparando-o ao 8 de janeiro de 2023.
O Ministro da Justiça e da Segurança Pública precisa ajudar Lula a demarcar os passos superativos dos já gigantescos problemas da gestão política do mercado (sob a tutela dos mais poderosos, ou revolução passiva), o que já é tarefa hercúlea diante da guerra em curso na Ucrânia (como construir uma posição independente sem riscos de sacrificar o futuro dos brasileiros?), balizando os cenários futuros e a sua própria pretensão de ascender à presidência. Por que não?
Lula nesse sentido sofre ainda mais outra tensão, agora interna, que é a construção de politicas reparativas em tempos de crescimento minguado, tendo de conviver com uma base minada por torções e distorções entre forças confusas de dois blocos no poder: os pragmáticos (realistas e transformistas) e outra, ideológica (“utópica e revolucionária”). Nesse ambiente o discurso de Flavio Dino sintetiza em boa medida a sinuca de bico do governo, razão do apelo sistemático à simplificação da política amigos versus inimigos, ao mesmo tempo em que é parte do grande acordo com os donos do poder e do dinheiro (transformismo) com o qual Lula renova hoje os compromissos básicos de 2002.
Mas o que esse recurso nivelador da chacina na creche ao ataque aos três poderes de 8 de janeiro elide? Como sair dessa armadilha, unindo petistas e lulopetistas, mais, incorporando amplos setores que não votaram em Lula num projeto mais sólido de unificação nacional? É hora de absorção de quadros oriundos do exército derrotado. Ou não?
Em muitos aspectos estamos diante de uma inusitada regressão social, a ser revertida com boa política. Ela a todos envolve e responsabiliza. Muita atenção com aqueles que atribuem a loucura, a desordem, o lado errado da história, aos outros…
Situações aterrorizantes não são, necessariamente, sinônimas de terrorismo. Descobrir suas especifidades é um caminho de discernimento, evitando a areia movediça da guerrilha de narrativas. Graças a elas as polarizações falseadas sobrepõem-se e escamoteiam as polarizações reais, fortificando o que se quer desconstruir.
Penso haver equívocos na argumentação de Flavio Dino, com consequências nada saudáveis para a reconstrução do imaginário político já bastante debilitado. A democratização exige clarear questões e não misturá-las, confundindo-as com objetivos imediatistas de cunho político. Há que se enfrentar a paralisia cognitiva-afetiva que nos assola, a todos. E não alimentá-la com “narrativas” tão perniciosas quanto aquelas de nítido cariz protofascista.
Flávio Dino é um jurista e homem crítico de qualidades inegáveis. Ex-magistrado e partícipe de lutas por direitos humanos, ciente da natureza de que os acontecimentos de Brasilia e Blumenau são radicalmente distintos. A inapropriada e forçada “equivalência” entre ocorrências nada semelhantes, pode ser compreensível como resultante do jogo político quente em um momento sensível da nossa história, ainda marcada por um clima pós-eleitoral revanchista. Mas nela insistir indica um nítido contrassenso.
Acabamos de suspender a marcha totalitária mas isso não significa que a besta esteja morta. Bolsonaro e o bolsonarismo ocuparam vazios de uma direita arcaica e hoje ainda significam a grande novidade política, com capacidade de mobilizar milhões de seres humanos identificados com suas estúpidas e histriônicas propostas de transformação social.
A aposta nos planos econômicos do governo como base da reprodução do projeto popular não se viabiliza por si só. Há que ampliar as bases eleitorais fora daquelas que ganharam as eleições. Sempre lembrando que a margem de votos pró-lula foi muito pequena pequena. O bolsonarismo não vai ser derretido no grito. Pelo contrário: quanto mais atacado mais se robustece.
O ambiente de comoção nacional causada pela morte de crianças potencializa retóricas estratégicas, reforçando as armadilhas dos tempos extremados. Mas os fatos em questão se distanciam jurídica e politicamente. O oportunismo político ficou evidente. E feio.
Terrorismo, atentados contra a democracia e assassinatos em escolas devem ser compreendidos em suas gêneses e no que neles há de comum e incomum. Um cuidado básico para enfrentá-los adequadamente, política e juridicamente, é unir as forças de segurança. Um ponto muito importante. Flávio Dino perde uma oportunidade de ganhar espaços institucionais junto às Polícias militares de toda a federação, na qual o bolsonarismo domina.
A ameaça de terror nas salas de aula é muito mais real aos olhos das famílias do que a especulação sobre atos pretensamente terroristas. O foco nos eventos criminosos de janeiro ou ilações com morte de estudantes dividem e equivocam, enquanto a tomada de consciência da urgência na proteção das crianças, com o necessário apoio da Polícia militar, somam e convergem interesses.
Resumindo. Em Blumenau não se identifica uma pauta política propriamente dita no massacre das crianças da Creche Cantinho Bom Pastor. A chacina na escola de Blumenau é um ato individual e isolado e não é, particularmente, direcionado contra o governo. Aqui temos um ponto importante no que tange à tipificação do terrorismo nas ordens juridica internacional e nacional.
O conceito de terrorismo do direito internacional é claro, definindo os “atos criminosos destinados ou calculados a provocar um estado de terror no público em geral, um grupo de pessoas ou pessoas em particular para fins políticos (Resolução. 49/60, ONU”.
Após o 11 de setembro, aquela conceituação de terrorismo foi alargada para se inserir a intenção de intimidar ou obrigar um governo ou organização internacional a praticar ou abster-se de praticar quaisquer atos. Em razão disso, pode-se atribuir aos atos de janeiro de 2023 a condição de atos de terrorismo no plano internacional.
No plano interno, da legislação criminal, o crime de terrorismo, a rigor e salvo melhor juízo de penalistas, só se perfaz, quando houver “razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”. Matéria complexa, beirando o controverso, mas a rigor os atos de janeiro não caracterizam no Brasil crimes de terrorismo, mas esse é outro debate.
Por certo, na arena política as polarizações já referenciadas, reais, mas também falseadas (há décadas e agora acirradas) induzem à uma elasticidade semântica com evidentes efeitos deletérios no direito e na política. Os presos e implicados no 8 de janeiro vão responder por muitos crimes mas não por terrorismo, conforme é comum divulgar-se na mídia e nos grupos de exaltados anti-bolsonaristas.
Mesmo o Ministro Alexandre Moraes tem insistido em tipificar aquela manifestação como terrorista, talvez preparando o terreno para um julgamento em Corte Internacional. Mas é este o papel de um Magistrado de Corte Superior?
Não há intenção política alguma dirigida contra um governo ou algo similar da parte do assassino no evento de Blumenau, mas expressão de graves distúrbios mentais. Caso psiquiátrico que pode estar referenciado na confusão com uma justificativa política, embora sem conexão alguma ou mínima, com o fundamentalismo islâmico, a exemplo do que ocorreu nos crimes na escola do Realengo (2011), com doze mortos.
No caso de Blumenau, mesmo se o criminoso nutrisse simpatia por Bolsonaro ou no limite, admiração pelo nazismo – o que não foi verificado, não estaria configurado, por si só ato terrorista, pois ato individual sem propósitos anti-governo ou com conotações xenófobos, religiosas.
A equivalência entre os dois tipos de terror é um erro e merece muita reflexão, distinguindo os vários tipos de terror e terrorismos, inclusive quando ele se revela nos discursos competentes e em nome de boas intenções e do progresso social.
É hora de superar cantilenas dos ressentidos e atrair para o campo democrático forças outras que não aquelas no poder.