Reportagem de TV vira o livro “Rio Paraguai, das nascentes à foz”

“Rio Paraguai, das Nascentes à Foz” registra em livro a reportagem dos jornalistas José Hamilton Ribeiro e Eunice Ramos feita para a televisão. Para desvendar o lendário Paraguai, a dupla percorreu o curso do rio de ponta a ponta

O jornalista José Hamilton Ribeiro- Foto Kenji Honda/Globo Rural

O Mar dos Xaraiés. Esta foi a primeira denominação do Pantanal do Mato Grosso, dada pelo “adelantado” (governador) do Paraguai, o aventureiro espanhol Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, primeiro europeu a navegar rio acima as águas do Paraguai, em 1536. Encontrando o Pantanal, julgou ser um mar interior, de tão vasto.

Navegando em sentido contrário ao aventureiro espanhol, rio abaixo, os repórteres José Hamilton Ribeiro e Eunice Ramos percorreram seu curso de ponta a ponta, resultando, dessa jornada, o livro “Rio Paraguai, das Nascentes à Foz”, lançado pela Realejo Livros.

Feito inédito

A dupla de jornalistas realizou uma façanha inédita, pois até essa mega reportagem nenhuma outra expedição fizera todo esse percurso. Nem militares, nem acadêmicos, nem mesmo os aventureiros e os bandeirantes se deram à curiosidade de percorrer todos os 2.600 km desse rio que constitui, segundo alguns geógrafos, a espinha dorsal da América do Sul.

Correndo pelo meio do continente, o Paraguai centraliza quase todos os grandes sistemas do subcontinente, pois nasce a poucos quilômetros da bacia Amazônia (poderia perfeitamente ter corrido para lá, mas “escolheu” dirigir-se ao sul), tem à sua direita os contrafortes da Cordilheira dos Andes e, à esquerda, as terras que vão constituir o sistema do Atlântico.

Nuñes Cabeza de Vaca

Politicamente é o demarcador das fronteiras entre quatro países e muitos estados e províncias das quatro nações que percorre. Ainda no Brasil, separa os estados do recente Mato Grosso do Sul do Mato Grosso tradicional. Depois, divide Brasil e Bolívia, Brasil e Paraguai, Paraguai e Argentina. É único rio nascido no Brasil a banhar uma capital estrangeira, Assunção, a cidade mais antiga do mundo hispânico no Cone Sul.

Como topônimo é mais antigo do que o Descobrimento. Os ameríndios primitivos chamavam-no de Paiaguá-y, o rio dos Paiaguás, nome tirado da denominação da etnia dos temidos índios canoeiros que dominavam o Paraguai em toda sua extensão.

Os autores

Os autores são jornalistas consagrados: José Hamilton Ribeiro é unanimemente considerado o repórter número um do Brasil; é o mais premiado e com uma carreira relevante, que tem entre seus feitos a cobertura da guerra do Vietnã; Eunice Ramos é uma repórter da rede de televisão mato-grossense da TV Centro América, de Cuiabá, afiliada da Rede Globo.

Zé Hamilton (como é conhecido entre os profissionais de imprensa) fez a matéria para o programa Globo Rural. Os trabalhos se desenvolveram entre novembro de 2011 e fevereiro de 2014. A série foi exibida em rede nacional, dividida em cinco capítulos, em agosto de 2014. Certamente, uma das maiores epopeias jornalísticas brasileiras.

O livro é escrito a quatro mãos.

Olhos d’água

A aventura se inicia num remoto olho d’água (nascente) em Mato Grosso, em meio a um banhado na Fazenda Sete Lagoas, no Planalto dos Parecis, município de Alto Paraguai, 400 km ao norte de Cuiabá, nas franjas das primeiras águas que descem para o norte rumo à Bacia Amazônica.

Essas primeiras gotas são aceitas como nascente oficial, segundo informou aos repórteres o professor de Ecologia da Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT), Rodolfo Curvo. Entretanto, outros geógrafos sugerem que o rio Paraguai seria a junção de vários córregos, que formam o riacho Sete Lagoas, ali no Planalto dos Parecis, que se transforma no rio Paraguaizinho e depois pega seu nome definitivo.

Na altura da única cachoeira que tem ao longo de seu trajeto, recebe o rio Diamantino e passa a se chamar Rio Paraguai. Também a partir daí suas águas são navegáveis: logo abaixo da queda d’água os repórteres encontraram o barqueiro Mané Cegueta, codinome de Manoel Marcelino, que impulsiona uma canoa movida a zinga (uma vara que se apoia no fundo do rio), num ponto tão raso que “não comporta um motor, causa enrosco (quebra a hélice)”, diz o seu primeiro navegador.

A bordo do Marruá

A cidade de Diamantino, como diz o nome, origina-se num garimpo de diamantes, origem da ocupação do Mato Grosso, ainda no século XVI, pelos bandeirantes paulistas, que expulsaram dali os espanhóis que vinham de Assunção e integraram esse território ao Brasil.

Dali em diante os jornalistas embarcaram num navio fretado, o Marruá, nome emblemático, pois essa palavra designa um boi bravo, palavra adequada ao Pantanal, região de pecuária desde os tempos coloniais, e seu capitão, conhecido pela alcunha de “Comandante Onça Braba”.

E assim se foram de cidade em cidade: Cáceres, Barra do Bugre, Porto Índio, Corumbá, Ladário, Porto Murtinho, dentre outras localidades; de fazenda em fazenda: Fazenda Tupaciara (produtora da palmeira Carandá), da Fazenda Barro Vermelho (que outrora foi fábrica de charque), Fazenda Deslavados, lendária propriedade com mais de um milhão de hectares, com rebanho de 300 mil cabeças de bovinos, que tinha uma fábrica de carne enlatada exportada para a Europa pelo porto de Buenos Aires; as fazendas preservadas, reservas privadas (as RPPN) como a Fazenda São Pedro, na Serra do Amolar, a única e solitária cadeia de montanhas no meio da planície pantaneira.

O frigorífico de Concepción, já em território paraguaio, dirigido pelo brasileiro Marcos Hermann, que abate 1.200 cabeças por dia de gado criado a campo, carne exportada para o Brasil, Chile e vários países da Europa.

Os repórteres visitaram lugares poéticos, como a Curva do Rio, em Corumbá, cantada romanticamente no rasqueado “Chalana”, dos compositores Mário Zan e Arlindo Pinto; o lago azul de Ypacaraí, inspirador da guarânia mais conhecida no mundo inteiro; a fábrica de harpas de Assunção.

Ao longo da viagem visitaram as unidades militares das fronteiras, como a guarnição de Porto Índio e as fortalezas de Forte Coimbra (Exército) e a base do 6º distrito Naval em Ladário, bastiões brasileiros que fazem parte da história militar do Brasil, disputados, tomados e retomados na Guerra do Paraguai.

Também na fronteira, do lado paraguaio, há o antigo Forte Bourbon, atualmente denominado Forte Olímpia, que foi palco de combates durante o conflito. Há ainda uma visita à fortaleza de Humaitá e seus museus, também a Paso de Pátria, com suas relíquias dos tempos de Solano Lopez.

Reminiscências da guerra

O grande conflito, a guerra da Tríplice Aliança, aparece em reminiscências, ao longo de quase todo o percurso, pois o rio Paraguai foi o principal teatro de operações da grande guerra, chamada Guerra do Paraguai no Brasil.

Pintura de Pedro Américo: Guerra do Paraguai. Museu de Belas Artes

Neste assunto, os repórteres apresentam relatos curiosos das versões que captaram das populações locais, sem se referir à historiografia ou a relatos de historiadores acadêmicos, produzindo narrativas descompromissadas, confusas, mas vivas e interessantes, embora imprecisas.

Neste particular, além dos relatos sobre os combates, saques, violências e outros dramas da grande guerra, há uma história singular, sobre o único sobrevivente de um massacre denominado, no Paraguai, de “cambarecê”, que é parte do livro clássico “A Retirada da Laguna”, do escritor Alfredo d’Escragnolle Taunay. Nesse episódio, confirmado aos jornalistas pelo historiador Hildebrando Campestrini, do Instituto Histórico e Geográfico de Campo Grande (MS), os brasileiros, em retirada, acossados pelos paraguaios, nas proximidades de Miranda, abandonaram seus feridos e doentes, esperando que os paraguaios os aprisionassem e tratassem.

Entretanto, todos foram passados a fio de espada ou estocados de baionetas, num massacre denominado “cambarecê” que, em língua guarani, significa ”o choro dos negros”. Os paraguaios denominavam brasileiros, pejorativamente, de “macacos”, porque a maior parte dos soldados era composta de negros.

Corridão de onça

Nestas narrativas é personagem o garimpeiro Calixto Medeiros, único sobrevivente do massacre de cambarecê que, fazendo-se de morto, misturando-se aos cadáveres, escapou, para contar a história, que faz parte da crônica daquela região. Calixto viveu até os 93 anos; sua neta Maria Ávila, que viveu até os 95 anos, ouviu a história de viva voz e a transmitiu aos descendentes. Assim essa narrativa sobrevive até hoje como fato relevante naquela região do Pantanal.

Não dá para falar numa só resenha de tantas abordagens que fazem parte da matéria jornalística e do livro. Há muitas fontes, citadas, como os cientistas da UNEMAT e pesquisadores da JCMbio, dos estudiosos da vida dos felinos, como Peter Crewshaw. Histórias divertidas como o susto e um corridão que a autora levou de uma onça.

O livro é uma grande reportagem da reportagem. Para o público leigo, um mergulho na vida e nas maravilhas do Pantanal. Para jornalistas, veteranos ou estudantes, uma lição de reportagem, passo a passo, detalhe a detalhe, demonstrando os sacrifícios, o empenho e a dedicação dos autores para conseguir essa matéria única na história do jornalismo brasileiro.

Um livro que vale a pena.

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