Meus gatos não moram comigo, mas habitam a casa de amigas e amigos. São ‘Frajolas’, tricolores em preto, marrom e branco – fêmeas por excelência, tigrados, monocromáticos, bicolores; de muitas raças, muitos amores e grandes humores, mas não moram comigo. Têm nomes pomposos, homenagens literárias; ‘Clarice Meirelles’,‘Bukowisk’ e ‘Neruda’. Musicais; ‘Raulzito de Moraes’. Artistas e arteiros por excelência ao gênero Felis, aparecem como ‘Manolo Iglésias’ e ‘Paulo Autran’. Homenagens aos deuses do Olimpo – muitas vezes se sentem os próprios –,‘Apolo’, ‘Zeus’ e ‘Atena’ ou aos nórdicos mitológicos ‘Frigg’ e ‘Odin’, que também rotula uma saborosa cerveja artesanal lager, e ‘Freya’. Há, ainda, os astrais, que vivem no mundo da Lua gatil: a própria ‘Luna’, ‘Mars’ e ‘Júpiter’, os imperadores; ‘Nero’, ‘Napoleão’, ‘Tibério’ e ‘Vespasiano’ – se acham -, os humanizados, ‘Sebastião’, ‘Luizinho’, ‘Paulo Roberto’, ‘Godofredo’ e ‘Serafina’, os criativos ‘Gaveta’, ‘Almofada’ e ‘Ecrã’ e, concluindo a lista, os ‘pé de chinelo’ ‘Pretinho’, ‘Bebê’ e ‘Baleia’. Nunca entendi bem essas ‘homenagens’; salvo pouquíssimas, diminutas, raríssimas e honrosas exceções, em tempo algum vi qualquer deles atenderem uma chamada nominal.
Também nunca percebi, desde tenra idade, a tal ciranda que incita a dar pauladas nos felinos; essa tal de dona Chica, com um sotaque afrancesado em ‘doberrô’, estimulava, desde sempre, à violência contra os animais. Melhor a versão nacional para Another brick in the wall do Pink Floyd: “…Ei, Chica/Deixa o gato em paz//Não vamos maltratar o pobre rapaz…”.
Meus gatos não moram comigo. Vivem na pedra do Arpoador, na Praça da República, no Aterro do Flamengo – obviamente o Manto Sagrado –, no cemitério da Consolação, no CADEG, na Monte Alegre, junto ao Museu Carmem Miranda no Flamengo — olha ele ’tra-vez aí, no Jockey Club, Passeio Público, até no IPUB e em lares, muitos lares, muito, confortáveis, por sinal, em várias cidades da Terra Brasilis.
Meus gatos não moram comigo, mas encimam letreiros: ‘O gato que Ri’, restaurante tradicionalíssimo de São Paulo ali no, não menos famoso, Largo do Arouche, no ‘O gato que Lê’, sebo com prateleiras cheias de charme e histórias da Vila Mariana, na Terra da Garoa, onde a personagem principal, ‘Lola’, dá boas-vindas aos leitores, na ‘Academia do Saber’ com seus gatos, aboletados sobre as vigas que sustentam o casarão secular, ou onde repousam sobre o verso esplêndido dos mais de 200 mil livros, à espera do comprador-leitor mais voraz e curioso. Fazem tanto sucesso, que a imensa loja, cheia de preciosidades, principalmente da Flor do Lácio, se tornou o ‘Sebo dos Gatinhos’. Pensam que são aves empoleiradas, tal qual é a parcimônia com que se refastelam nos sustentáculos de aço; são gatos alfarrabistas e sonhadores.
Meus gatos não moram comigo. A ‘Mila’, de pelagem do mais profundo ébano, divide com muitos companheiros os espaços do cemitério da Consolação, encravado em meio à Paulicea Desvairada, museu a céu aberto com o mais belo da arte tumular e cemiterial. Berço final de alguns Modernistas e do incrível Militão Augusto de Azevedo; carioca que retratou, no século 19, uma São Paulo em ebulição. Ela é minha fiel companheira nas incursões fotográficas, por mim, realizadas na necrópole mais antiga da cidade. Vai me indicando caminhos, locações e visões como que trasladando seu conhecimento do espaço, por telepatia simbiótica.
Meus gatos não moram comigo, isso me traz ônus e bônus. Não pago as contas (rs), o que em tempos bicudos, como os atuais, pode parecer uma vantagem. Qual o quê; mera ilusão, porém, não ganho afagos diários naquela chegada inusitada, não tenho ronronar, não há o ‘amassa pão’ em minha barriga, não sou acordado com as tradicionais lambidas matinais…
Meus gatos não moram comigo; sinto suas faltas…
*Do livro “Miados de amor” (Páginas Editora – 2022)