Mais Médicos: “Nunca houve escravidão”, diz embaixador de Cuba

Tão logo começaram as hostilidades aos médicos cubanos, a partir das referências ao trabalho escravo por Jair Bolsonaro, eleito presidente, Rolando González, encarregado da Embaixada de Cuba no Brasil, deu partida a uma operação de retirada de 7,5 mil médicos. Quem quis ficar, ficou, garante González

O embaixador de Cuba, Rolando González - Foto: Orlando Brito

Rolando Antonio Gómez González teve apenas duas semanas, após as eleições de 15 de outubro de 2018, para concretizar uma operação logística de retirada do Brasil de 7,5 mil compatriotas espalhados em todos os cantos do País. O Brasil havia recém-eleito um novo presidente (Jair Bolsonaro) quando foi alertado por políticos brasileiros aliados que os médicos cubanos seriam considerados “personae non gratae” pelo futuro mandatário.

Operação de mobilização de pessoas só comparável a que realizou em 2005, quando um terremoto matou cerca de 100 mil pessoas no Paquistão. Na época, Rolando González conseguiu transportar 2.554 médicos e instalar 36 hospitais cirúrgicos na região da Caxemira, na fronteira com a Índia, para atender as vítimas em uma operação de ajuda humanitária de Cuba ao Paquistão.

Medicina de exportação

González hoje faz às vezes de embaixador cubano no Brasil. Formalmente, porém, é o encarregado de negócios de Cuba no País que se tornou hostil à ilha caribenha.

Ele está à frente da Embaixada de Brasília desde que Dilma Rousseff foi deposta pelo Congresso Nacional. Em protesto, a então embaixadora Mariaelena Capote voltou à Havana – para quem o impeachment foi um golpe.

Experiente diplomata – já serviu em quatro continentes – e dono de uma vigorosa retórica nacionalista, mas sem levantar a voz acima do necessário, González refuta as acusações do presidente Jair Bolsonaro. “Nunca houve escravidão no Mais Médicos”, repetiu mais de uma vez durante uma conversa com a equipe de Os Divergentes na noite da última quarta, 11.

Reconhecida como uma das melhores do mundo, a medicina cubana não surgiu de repetente. O País dos revolucionários Fidel Castro e Ernesto Che Guevara desenvolveu políticas públicas para garantir à sua população atendimento médico gratuito de saúde à toda a população. Hoje, todos os cubanos têm acesso à saúde pública.

O sucesso na aplicação da política foi tão intenso ao ponto de ocorrer a formação de excedentes de médicos que passaram a atender outras populações do mundo em ajuda humanitária – ou com a prestação de serviços remunerados, como foi o caso do Brasil governado pelo PT.

No Brasil, em 2013, a presidente Dilma Rousseff enfrentava uma grave crise no sistema de saúde por falta de vagas nos hospitais para atender a população castigada por diversas enfermidades, como as provocadas pelo mosquito da dengue. A falta de atendimento básico da população era causa de queda da popularidade de Dilma, alertavam os marqueteiros.

Doutores cubanos desembarcam no Brasil como integrantes do programa Mais Médicos. Fotos: Agência Brasil

A solução apontada pelos profissionais de saúde pública foi a de aumentar o número de médicos em postos de saúde para atender os pacientes e evitar filas em centros hospitalares de maior complexidade. O alvo principal eram os locais onde médicos brasileiros não se dispunham a medicar.

Que vengan los cubanos

Dilma precisava de respostas rápidas para atender um contingente estimado na época de 60 milhões de brasileiros que viviam nas periferias das cidades e nos interiores do País. Como não haveria médicos disponíveis no Brasil e em outros países para encarar um trabalho em lares pobres, de pouco conforto e pouca segurança, os profissionais da Organização Pan-americana de Saúde (Opas) indicaram os médicos cubanos.

O ministro da Saúde, Alexandre Padilha (PT), promoveu licitação internacional para contratação de médicos. Porém, como o número de interessados ficou muito aquém do necessário, recorreu à Opas para contratar os médicos cubanos.

Pelo acerto, a Opas recebeu do Brasil R$ 12 mil por mês pelo serviço de cada médico cubano. Os recursos foram repassados por aquele organismo internacional ao governo cubano, que, por sua vez, destinava aos seus médicos que trabalhavam no Brasil cerca de 1/3 do valor.

Os médicos cubanos continuaram recebendo regularmente os vencimentos de servidor público em Cuba. No Brasil, as prefeituras cobririam despesas de moradia

Médico cubano em atendimento na Ilha do Marajó – Foto: Opas

De acordo com González, os 2/3 destinados aos cofres do erário cubano destinavam-se à saúde dos 11 milhões de habitantes da ilha. O embaixador assegura que todos eram livres para voltar a Cuba ou ficar no Brasil.

20 mil médicos

Durante seis anos, cerca de 20 mil médicos cubanos se instalaram em todas as regiões do País. Já na primeira leva de 11.400 mil médicos que atenderam a população em 4.058 municípios, houve uma percepção imediata dos benefícios do atendimento médico pela população. A aprovação do Programa Mais Médicos rendeu à Dilma bons resultados nas pesquisas.

O deslocamento do primeiro grupo de médicos cubanos para o interior do Brasil representou outra grande operação logística, envolvendo grande contingente das Forças Armadas, em especial da Força Aérea Brasileira (FAB).

A retirada dos 7,5 mil médicos por Rolando Gonzáles, no final do governo Michel Temer, foi feita apenas com esforço dos cubanos. Em tempo recorde de 16 dias, entre outubro e novembro de 2018, logo após as eleições presidenciais, médicos que estavam a 3,4 mil quilômetros de um aeroporto tiveram que ser removidos. Na maioria das vezes, com seus equipamentos de trabalho, além de pertences domésticos, como televisores e até geladeiras.

Profissionais cubanos que atuavam no programa Mais Médicos embarcam de volta ao seu país – Fotos: Agência Brasil

 

Aviões fretados, em dois vôos diários, transportaram seus médicos e mais de 320 toneladas de bagagem. Apesar de toda a propaganda de trabalho escravo, ficaram inicialmente no Brasil 1,7 mil médicos que constituíram família.

Meses depois, cerca de 300 deles voltaram a Cuba. As razões para o regresso são muitas, como as gratuidades da educação e saúde, além da segurança.

Este último fator foi determinante para uma médica cubana de 23 anos que trabalhava em Fortaleza, no Ceará, e viu um de seus primeiros pacientes ser fuzilado na sua frente com 26 tiros. “Algo inexistente em Cuba”, espanta-se Gonzáles, onde assassinatos são raros.

100 mil médicos

Cuba tem 100 mil médicos, dos quais 40 mil estão prestando serviços em diversos continentes – Ásia, África, América do Sul, América Central e Europa. Os profissionais que passaram pelo Brasil deixaram saudade na população mais pobre pela cura de diversos males e o conforto de saber que teriam um profissional à disposição.

Acusados de espiões do governo socialista por altas autoridades do Brasil, os médicos cubanos deixaram uma experiência inovadora de medicina ao cidadão mais pobre; levaram, além da bagagem, conhecimentos únicos de doenças e cultura de um país continental e diverso em tudo da Ilha de Fidel Castro.

A missão dos médicos cubanos, segundo qualificado do país caribenho, é atender pessoas em qualquer lugar do mundo sem qualquer olhar ideológico e/ou visão revanchista. Tanto que a mãe de um dos responsáveis pela morte de Ernesto Che Guevara recebeu atendimento gratuito em Cuba.

A dignidade humana e a solidariedade são fatores que fazem com que aquele País, mesmo com todos os bloqueios econômicos dos últimos 60 anos, continue de pé.

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