Alguns mitos funcionam no avesso, duplamente. Por vício histórico original ou repetição tardia, fora das historicidades nas quais se produziram. Transplantes lembram Frankstein na ficção de potência e sobrevida possíveis, com rejeições horrorosas.
Chico de Oliveira utilizou-se da ideia de ornitorrinco cultural para expressar a imagem de uma evolução social truncada e improvável de nossa sociedade nada cordial na qual atores, instituições e coisas são sempre importadas e representadas em nome do progresso. Aí incluído o progresso do atraso, mas também o atraso do progresso, misturando-se e combinando-se em confusas e esdrúxulas mutações de narrativas, ideologias e simulacros. O quadro intercontextual (e intertextual) daí decorrente evidencia uma biruta sem parâmetros evidentes para uma direção histórica que se queira segura em termos civilizatórios, vale dizer, dotada de certa imunidade mínima aos acelerados ventos regressivos. Mas por que esses dois parágrafos introdutórios?
A derrota protofascista na eleição presidencial não é definitiva nem satisfatória para construir alternativas que, enfim, produzam um Brasil mais preparado (e menos deformado por suas elites) para o futuro. A linguagem do campo da política encontra-se rota para além da sintaxe básica na qual os grupos e classes sociais digladiavam-se, bem ou mal. O buraco é mais embaixo.
A “pós-verdade” tornou-se a própria semântica comum ao jogo de poder exercido sob diversos usos pragmáticos, confluindo canibalismo financeiro e idolatria nacionalista entreguista com cínicas pitadas da razão patriótica, regionalista ou internacionalista, azeitadas com diversos coloridos moralizantes: o medieval piegas no estilo histérico de Silas Malafaia ou sob surrados bordões cativos de socialismos de raiz positivista. Exagero?
A esquerda e a direita existem, mas suas identidades talvez superem as suas diferenças no bojo de uma luta social plena de desarticulações e erros políticos, embaçando horizontes e alternativas. Observem os leitores um aspecto particular dessa situação: os principais protagonistas históricos no contexto eleitoral polarizado com progressivo empobrecimento da crítica, vale dizer, com uma intelectualidade preocupada com a ênfase no “gênero neutro” e outros modismos identitários, curiosamente típicos de uma pós-modernidade ultraconservadora, fragmentando as lutas mais amplas, como bem estudado por Mark Lilla e tantos outros. Retorno à identidade da imagem espelhada como inverso dos indivíduos por pertinência a B ou L, igualmente atingidos pela desinformação geral a provocar em maior ou menor grau certa paralisia cognitiva-afetiva.
Basta observar em nossos círculos sociais mais imediatos, de familiares, amigos, profissionais, aqueles que ainda veneram, ou veneram ainda mais o Messias fugido para a Disney ou o recém empossado presidente, desesperado por resgatar uma imagem de homem probo. Laços de fraternidade, sociedades de negócios, filiações religiosas são fraturadas em conflitos vulgarizados sob narrativas e contra-narrativas nas quais costuma-se naturalizar meias verdades e oficializar verdades definitivas. Localizar a origem das fake news e das notícias dirigidas ao campo da ultradireita neste século XXI é uma meia verdade. A falsificação da propaganda de massas desde Stálin e Goebbels foi sofisticada na era digital e todos os agrupamentos sociais em alguma medida acompanham certa hermenêutica para a qual interpretar não é buscar a verdade, como queriam os positivistas em geral, mas “buscar sentidos” a partir dos significantes implicados em dado contexto comunicativo.
Da parte do bolsonarismo, impressionante a teimosa catatônica com insistentes argumentações referencializadas em ideias fixas de conspiração, fraude eleitoral, pandemia comunista, apostas num pressuposto “contragolpe”, etc. Deixo de lado os preconceitos de gênero, com povos indígenas e militantes de Direitos Humanos. Eles beiram a estética nazista de uma pureza perversa para todos os impuros ou diferentes, elimináveis. São os proxenetas do mercado que venderam o liberalismo político aos objetivos seletivos e perversos do Consenso de Washington.
Mas há outra torção ideológica sob cultos ortodoxos, em plena celebração tendente à desmemoria histórica. Retorno, ciente da patrulha stalinista, a um ponto mais delicado a ser juntado nessa colcha de retalhos ornitorríntica, a cara-metade do lulopetismo frente aos destronado líder protofascista. Ela objetiva reproduzir seu próprio espantalho no zoológico político como esquerda de governabilidade, apresentada em novas núpcias entre estuprador e a viúva virgem segundo novas tecnologias estéticas.
Lula é uma espécie excepcional de liderança populista cujos seguidores agem como obedientes crentes. Não há dúvidas quanto aos seus predicados quase divinos. Além dos dotes extraordinários de carisma e sedução junto aos setores progressistas, Lula age por instinto e sorte, acertando e errando, sempre com uma vaga e confusa ideia do que foi o século XX na sua relação com o mundo das ideias em suas virtudes e embustes diante das metamorfoses atuais.
Como não há indivíduo sem sociedade ou fora dela, Lula produz-se socialmente com muita habilidade nas percepções de demandas e tendências, entregando à sua clientela um repertório de promessas capazes de produzir certezas em seus peões — em momento de incertezas, nas quais ele mesmo talvez não se arrisque a desafiar o Rei do mercado neoliberal que o condiciona, em defesa da sua Rainha que é a revolução-passiva, por ele mesmo reeditada vinte anos após 2002. Uma tarefa somente possível com o aval de intelectuais orgânicos jurados, em uma retórica na qual se misturam utopia e pragmatismo, da mesma forma em que se acomodam interesses corporativos ideológicos ou meramente mercantis, da parte de seu leque de estamentos que possibilitou a chegada ao poder pela terceira vez.
Lula não se encontra sozinho nesse esforço, mas acompanhado não somente da burocracia petista, mas de um exército de intelectuais e artistas absolutamente desprovidos de visão crítica ou dispostos a empreender revisões que os salvem de outros naufrágios. Assim, pasmem os crentes da igrejinha, Lula foi e continua sendo o maior motor histórico do Bolsonarismo. Este líder emergiu, entre outras condições sociais, graças àquele lulopetismo decadente nas políticas reparativas –sob o contexto de declínio mundial do crescimento após 2008 – mas já na corda bamba desde a sucessão de escândalos de corrupção explícitos com o Mensalão/2005) e de um cenário internacional revolto, de desespero do mercado produtivo em face da democracia liberal moribunda aos ditames de oligopólios financeiros.
Bolsonaro e bolsonarismo agregam, com relação à riqueza do zoológico político, os indícios mais evidentes de casos psiquiátricos (no quadro da loucura geral), a julgar pelo comportamento delirante do espantalho-mor, o Messias. Mas há que se situar, reitero, todos os principais atores dentro da cultura existente, autoritária, conservadora, elitista, golpista. Necessário o raio X dos dois braços para situar algumas das debilidades do lado vencedor das eleições.
Não há bandidos e mocinhos nesse nível de redução política pelas bordas, ou pelos “extremos”. A idealização de um Nós diferente procede em muitos aspectos da realidade, mas também dissolve as complementaridades e fusões que se produzem entre protagonistas no jogo do xadrez político, social e estético.
Lula ilude-se com não rara arrogância e temperos revanchistas, combinando a esperança de domar a besta neoliberal com uma improvável mistura de acenos à urgente reparação de danos aos mais desprotegidos e afagos em quintais geopolíticos ideologicamente arcaicos como resíduos da Guerra fria. Tudo sob o aval de tudo e de todos, os donos do poder e do dinheiro no domínio global.
Considere o leitor que o transformismo de Lula III em sua segunda edição (a primeira teve início com Lula I) sonha fazer da mercadoria ambiental uma moeda salvacionista global cujo lastro de seu banco central ecológico é garantido por nossos biomas em suas diversidades inigualáveis. Jorge Caldeira situa os obstáculos (boicotes) a essa grande oportunidade aberta ao nosso país para este século. Eles são culturais e dizem respeito à visões de mundo e ideologias que, senão mortas em pleno século XXI, exigem urgente ciência e descontruções (em face de suas inadequações) diante das transformações em curso a desafiar novas compreensões do agir diante do caos. Sem esse profundo autoconhecimento das cafonices de nossos liberais e socialistas na história republicana, daremos com todos os burros dentro do mesma areia movediça da política menor. Mais uma derrota talvez comprometa todo o século no objetivo de construção de um mundo mais equilibrado, social e ecologicamente.
Bolsonaro aposta e aguarda capitalizar na petulância crônica de Lula em provocar militares (de forma vingativa), ou ao propor velhas políticas forjadas numa geopolítica com vizinhos latinosamericanos, um prenúncio de erros do passado com chance reais de atrair e empurrar, novamente, as forças da direita para a extrema direita, caso aquelas não logrem fixar seus interesses dentro da ampla frente construída e já em grande medida, descontruída por Lula.
Na ida oficial à Argentina, uma sucessão de extrapolamentos e non senses marcaram a fala de nosso presidente. Eis alguns deles:
1°) Lula apressou-se em anunciar financiamentos do BNDES a países da América Latina. Ok. Eles podem servir e serem bons para o Brasil, econômica e politicamente, além de usufruirmos das trocas de produtos. Mas devem, obviamente, acautelarem-se com inafastáveis e sólidas garantias, evitando calotes já conhecidos. Ademais, convinha priorizar, em Buenos Aires, essa tendência “diplomática” regionalizada num mercado geral no qual as trocas com a Argentina contam pouco, hoje ficando em torno de 25 bilhões de dólares? Nosso comércio é muito mais robusto com a Europa, os EUA e países dos BRICS.
Lula foi além. Inadvertidamente para a surpresa de todos, nosso presidente anunciou uma espécie de moeda comum entre Brasil e Argentina, proposta retomada e repetida superficialmente por Hadadd, ministro da Fazenda, via simplificação grosseira.
No caso da Venezuela, Lula gastou parte do seu discurso ressentindo à ausência de Maduro. Por certo, o petróleo e outros interesses naquele país unem a Venezuela ao Brasil e à América Latina. Mas essa intenção de restauração prioritária de um Mercosul e mesmo dos BRICS deve preceder à convocatória de outros países e outros mercados que de fato contam na equivalência entre potências e onde dar-se-ão as costuras mais decisivas para um Brasil ambiental global.
2°) Ao “Lula extrapolando” quanto ao sentido da nossa economia seguiu-se outro pomposo extrapolamento , por referência ao ex-presidente Bolsonaro, acusado de genocida. Pergunta sem adentrar no mérito no obscurantismo diante da pandemia: para que esse discurso bélico se bolsonaristas (e Bolsonaro) já se encontram em parte dentro do governo, via centrão ampliado e, justiça seja feita, graças às habilidades de Lula, um mestre na cooptação? A que serve agredir bolsonaristas, hoje cansados, frustrados, traídos, enfim, mergulhados num luto do qual nem todos seguirão as fileiras dos fundamentalismo e do terrorismo. O dia 8 de maio apressou a implosão bolsonarista. O braço (des) armado do Jair está mais para a lenta absorção na direita não extremada ou até mesmo nas próprias estruturas burocráticas do estado de direito que a seguir manuais de pífias guerrilhas urbanas.
3°) Um derradeiro extrapolamento do discurso de Lula deu-se com relação às Forças Armadas. Lula parecia não se sentir comandante em chefe. Ao invés de aproveitar para tecer elogios ao comportamento do Exército na figura do novo comandante, preferiu exalar poder, tecendo média com los hermanos, ao prometer punições e exonerações de militares. De fato o acerto de contas com os militares nas ditaduras dos dois países deu-se de formas radicalmente distintas, ok. Mas no que esse tipo de comportamento, entre outros como restauração da “Comissão da Verdade”, (na atual conjuntura), contribuirão para distensionar o campo do político, potencializando atitudes no sentido de fazer avançar a democratização?
Um mês de governo e maus ares prenunciados em Buenos Aires.