Quando escreveu “Ensaio sobre a Cegueira”, o visionário escritor José Saramago imaginou uma epidemia se alastrando pelo mundo. Uma epidemia que deixava a todos cegos. Os contaminados eram encarcerados em locais semelhantes a antigos leprosários e tentavam sobreviver ao isolamento, ao preconceito e ao pânico. E a possibilidade de contágio despertava o que há de pior nas pessoas: o egoísmo, a loucura individualista.
O mundo agora se vê nas páginas de Saramago. O covid-19 se espalha sem fronteiras. E, no Brasil, temos talvez o único presidente do mundo que não só minimiza a doença, mas chama de histéricos quem busca evitar o caos. Ou seja: ao que parece, no caso do nosso presidente, a doença teve efeitos semelhantes aos do romance de Bolsonaro, provoca certa cegueira.
De uma maneira inconsequente, lunática e bipolar, o mesmo Jair Bolsonaro que pediu às pessoas para não irem às ruas no dia 15 de março se misturou ao povo em frente aos palácios do Planalto e da Alvorada. Tirou fotos, apertou mãos. Esqueceu que ele mesmo fará um novo exame para descartar a presença do vírus que já chegou a 14 dos integrantes da comitiva presidencial que voltou há poucos dias dos Estados Unidos.
Calcula-se que o efeito do coronavírus será devastador. Num país já arrasado pela epidemia do desemprego e da economia sem rumo, o gasto previsto com UTis por conta do coronavírus é de R$ 1 bilhão.
É falta de lucidez, é cegueira voluntária fazer de conta que nada está acontecendo e que o vírus não chegará até nós. Ele já está entre nós, como o mal que causou a cegueira fictícia do livro de Saramago. Lançado em 1995, o romance narrava a cegueira branca que atingia primeiro um homem; depois uma cidade inteira. O governo não se importa e, quando decide agir, as pessoas infectadas são colocadas em uma quarentena com recursos limitado. Viver se torna um desafio.
O livro virou filme, dirigido por Fernando Meirelles. Muita gente assistiu e se apavorou. Saiu do cinema mexido, imaginando como seria viver nessa situação. Foi assim comigo. Achei, ingenuamente, que se tratava apenas de uma metáfora sobre as coisas que estavam no mundo e não queríamos ver. Sobre a cegueira branca diária de todos nós.
Mas era muito mais do que isso. Era a visão do que podemos viver agora. Se não prestarmos atenção, se não nos organizarmos, estaremos fadados ao mesmo destino.
É necessário, portanto, que mantenhamos a lucidez. Que tenhamos discernimento para compreender que não é o caso de nos apavorarmos e ficarmos parados esperando tudo passar. É momento de calma e, se não for pedir demais, é momento de autoridades serenas, que consigam encarar o desafio. Alguns países da Ásia já conseguiram. Os italianos encaram com galhardia e bom-humor o isolamento determinado. Os espanhóis ficam em casa.
É bonito assistir aos italianos cantando o hino nacional e a belíssima Bela Ciao de suas varandas. Aqui, temos um sistema de saúde pública que garante a todos o atendimento. Esse é nosso diferencial e nossa melhor arma. Um sistema inclusivo que, mesmo depauperado, garante que os menos favorecidos tenham atendimento nos hospitais e nas Unidades de Terapia Intensiva. Em outros países, não é assim. O SUS é a nossa resistência. Precisa ser respeitado.
Quem sabe essa epidemia nos ensine a ser mais generosos; a ver as pessoas ao nosso lado como seres humanos iguais a nós. Quem sabe essa epidemia nos ensine a pensar no coletivo, a recriar o país, a reintegrar um povo partido ao meio por convicções políticas.
Quem sabe a cegueira nos traga de volta a lucidez. A lucidez relatada também por Saramago cuja mensagem é que sob a democracia podem estar escondidos vetores de natureza autoritária. Lúcido é quem os enxerga.
— Giselle Chassot Lago é Jornalista