Estou acompanhando com grande apreensão o debate sobre o Mercosul, com algumas vozes defendendo a sua extinção. Não quero abordar o assunto sob o ângulo econômico, mas devo fazê-lo sob o geopolítico.
Quando assumi o governo, com o desinteresse dos políticos pela política externa, tive margem para buscar concretizar algumas ideias que, como voz isolada, defendera nos meus trinta anos de Parlamento, com o meu conhecimento da História da América Latina, sobretudo do Cone Sul. E uma das coisas que eu não entendia era a rivalidade histórica entre o Brasil e a Argentina.
Pedi a Olavo Setúbal, meu ministro das Relações Exteriores, que fosse a Buenos Aires e apresentasse o desejo de um novo relacionamento, que acabasse com as nossas divergências, baseadas na teoria completamente errada de que quem dominasse o Prata dominaria a América do Sul. Isso era uma ideia velha, do tempo do Prestes João e das minas de prata do Potosí, na Bolívia.
Ficávamos presos nesse equívoco, mantendo a maioria de nossas tropas de defesa na fronteira sul, com hipóteses de guerra pregadas nas escolas militares dos dois países, enquanto, no norte, as guerrilhas convulsionavam o Peru, o Suriname, a Venezuela, a Colômbia. Assim, precisávamos voltar os nossos olhos para o norte, já invadido por guerrilheiros das FARCs em São Gabriel da Cachoeira, expulsos numa operação relâmpago e competente das nossas Forças Armadas.
Propus ao Presidente da Argentina, Alfonsín, uma reunião logo, realizada em agosto de 1985, e, nela, as bases do que seriam as nossas novas relações. Alfonsín estabeleceu comigo uma grande empatia, comungando das mesmas ideias de acabarmos as divergências históricas.
O primeiro grande problema era o nuclear, com os dois países lutando para ter a bomba atômica. Acabamos logo com a competição, inclusive com a visita de Alfonsín a Itaipu, que, naquele tempo, era considerava pelos argentinos uma bomba de água. Resultou disso o Tratado de Buenos Aires, depois recebido com o nome de Mercosul.
Nosso objetivo era fazer da América Latina, a partir do fim da divergência entre o Brasil e a Argentina, um mercado comum igual ao europeu — a União Europeia viria no futuro —, que começou com o Tratado do Aço entre a França e a Alemanha.
A ideia do Mercosul, de integração, considerada por Sanguinetti como o passo mais importante de nossa história, prevaleceu, e não podemos deixar de reconhecer que criou um comércio poderoso entre nossos países. Resultou disso o fato de sermos o único continente no mundo livre de armas nucleares, o que considero um serviço que eu e Alfonsín prestamos à humanidade.
Mexer agora com o Mercosul, mesmo com os erros que o enfraqueceram ao longo do tempo, é ressuscitar a antiga estrutura de conflito no Cone Sul e esperar pelas consequências geopolíticas que daí virão, sem dúvida.
Esta é uma advertência que me vem à cabeça, e não tenho dúvidas de que é preciso manejar com cuidado esse assunto, que não é econômico, mas pode ter um impacto da maior profundidade em nosso futuro.
José Sarney é ex-presidente da República, ex-senador, ex-governador do Maranhão, ex-deputado, escritor da Academia Brasileira de Letras.