“As emoções do homem são despertadas mais rapidamente que sua inteligência; e, como ressaltei há algum tempo em um ensaio sobre a função da crítica, é bem mais fácil sensibilizar-se com a dor do que com a ideia. Consequentemente, com intenções louváveis embora mal aplicadas, atiram-se, graves e compassivos, à tarefa de remediar os males que veem. Mas seus remédios não curam a doença: só fazem prolongá-la. De fato, seus remédios são parte da doença” Oscar Wilde (A Alma do homem sob o socialismo”.por.16).
A ultradireita costuma ver comunistas até nas calcinhas das esposas. Mas lulopetistas e mesmo liberais democratas engrossam a toada da crença no “Lula socialista”. Ambas as posturas adversas são compreensíveis em razão do tempo difícil de déficit de democracia e da consequente sensação de insegurança que dele resulta. Mas as duas percepções políticas desservem igualmente, em visão e procedimentos, ao que imaginam como um mundo melhor e como transformá-lo, diante do caos existente em todos os continentes.
Antolhos impedem perceber o que se passa ao seu lado e com isso a possibilidade de mudar de direção. São multicoloridos os antolhos em tempos polarizados: da “esquerda” e da “direita”. Importante pontuar como esses agrupamentos se veem, o que pretendem e, principalmente, como patinam diante de uma realidade a exigir conexões mínimas entre indivíduos e ideias. São mais de dois séculos de embates entre visões de mundo e ideologias e a realidade parece exigir uma modernidade mais compatível com as demandas de um mundo de crescentes carências. Não é à toa que ser político soa como atividade pouco nobre.
Sem conceitos e comportamentos novos, arcaísmos vão continuar a se reproduzir, atualizados. Em uma palavra: todos, esquerda e direita tradicionais continuarão a resvalar em ações e resultados inócuos (ou no limite dos resultados mofinos), se considerados na permanência e na estabilidade de aquisições libertário-emancipatória.
A novidade pode revelar-se, nesse caso, como algo reacionário, aquilo que reage ao progresso social. Sim, reação contra um mundo pleno de metamorfoses a deslocar a história e as perspectivas diante dela.
Certo, em nome da Razão e da Ciência avançou-se muito, mas persistem iniquidades inaceitáveis a exigir uma democracia mais efetiva. A política parece não dar conta de suportar a tensão estrutural entre mercado e sociedade. A emergência de governos populistas delegativos é um sinal de que o sistema representativo perde legitimidade. Esta parece se apoiar em outros pilares, não democráticos. Os hábitos dos atores daquele sistema têm responsabilidade significativa na desinstitucionalização em curso.
Os que se auto representam pomposamente como Esquerda na generalização do atacado, agem, por regra, no varejo do dia-a-dia por pragmatismo imediatista, interesses estamentais ou mera intuição (com relativa boa fé, portanto) sem perceberem que palavras, termos, mesmo condutas cristãs, para significar reais caminhos transformativos, necessitam de acordos semânticos mínimos. Sob pena de tornarem-se meras retóricas estratégicas, esvaziando o que sobrou das ideologias ou desprovendo-as da capacidade de crítica reconstrutiva.
Sem nada recolocar no lugar de velhos chavões bem surrada –luta de classes, alienação, vanguarda revolucionária, imperialismo, a não ser políticas com placenos integrativos ou de distribuição desigual e combinadíssima com os donos do pode e do dinheiro, assim seguem os socialistas, de costas para movimentos sociais cada vez mais desorganizados.
O mesmo descrito no parágrafo anterior se passa com os liberais conservadores, testemunhando a diluição dos apelos à liberdade, ao pluralismo, à democracia e ao mercado, reduzidos a algo aquém de um mínimo ético. Eles permitiram que seus espaços intermediários fossem ocupados pela ultradireita, em nome da eficiência econômica e da restauração do que percebem, no meio da tempestade social, como um mundo da tradição, corrompido pelas forças liberais laxistas e socialistas cínicas. Vamos por partes.
Lula chegou ao poder em 2002 e pela terceira vez em 2023, através de um grande acordo com os poderosos em busca de remediar muitas exclusões sociais. Transformismo é isso, acordo por cima ampliando a riqueza de poucos com a manutenção da ordem geral da condição subalternizada de milhões de seres humanos. Um modelo do Capital no qual a esquerda oficial (ou de direita) àquele subordinada logra os louros da oferta de migalhas para a maioria dos trabalhadores, com prendas razoáveis aos militantes intermediários e altos ganhos para as elites dirigentes. De fato a reparação de danos, se necessária, é incapaz de produzir a ultrapassagem da matriz assistencialista, a galinha dos ovos de ouro da nomenclatura. O remédio faz parte da doença, fortificando-a.
Do lado da direita mais presente na polarização (real e fictícia) dos dias atuais, ganham terreno os ultraliberais de cariz autocrático. É a fragmentação no bojo da direita liberal, empurrando o que sobrou da sua retórica legalista para os braços da ultradireita protofascista. Esse golpe do ultraliberalimo no romantismo liberal conservador é parte da mutação da ideologia da classe dominante, como redução à uma ideologia da classe dominante da classe dominante (de grupos fora do controle de Estados e mesmo de dado setor burguês). Como sempre? Não, a sofisticação reside na programada redefinição do trabalho assalariado e de direitos correlatos, com diluição diuturna dos espaços públicos de intermediação institucional, garantindo um exponencial acumulação sem precedentes.
O grito de guerra no mercado máximo é o do estado mínimo, com convocatória ao novo mundo do empreendedorismo. Seja o empresário de si mesmo é a palavra de ordem dos garotos de propaganda da sociedade do conhecimento, meio e fim do Homem liberado de todos os Senhores.
Esse novo velho liberalismo se apresenta como defensor da Liberdade, da Ordem e da Lei. Regresso, no geral, atualizando e aprimorando a mesma fonte da apologia ao mercado autopoiético. Ele sofistica e banaliza a cosmovisão liberal elitista, ultraconservadora, reacionária do laisser faire, agora mais empoderado com a razão histórica do pretenso “fim da história” anunciado um tanto equivocadamente por Francis Fukuyama.
As elites lograram ampliar o regozijo com a implosão do paradigma liberal-legal, pois diferenciados e diversificados muitos setores sociais acreditam que, ao final das contas, o mercado é a panaceia, ou mal menor que a promiscuidade do Estado e das suas instituições públicas. O que fazer?
Talvez seja oportuno no bojo das “emoções” recorrer ao trabalho da crítica. Esta não orna muito bem com o poder estabelecido. Há que se provocar os que se encontram nas zonas de certeza do entusiasmo (e do otimismo), a compreender como o fenômeno bolsonarismo guarda em sua gênese as desventuras do PT (e das esquerdas em geral). Sobretudo, deve-se sopesar na ação provida de conceito o que no bolsonarismo abriga-se, em boa medida, corações e mentes de mais de cinquenta milhões de indivíduos. Isso por que deve-se considerar um fato indigesto para lulopetistas mais convictos: a existência de uma cosmovisão bolsonarista hospedada em parcelas consideráveis do eleitorado, de suas famílias e mesmo nas hostes progressistas. Mas voltemos à questão colocada no primeiro parágrafo.
Governo socialista? De Lula? Hoje, no mundo, há poucos sistemas socialistas-comunistas (aproximadamente seis). Entre os mais em voga temos Cuba, Vietnã, Coréia e, em parte China. Esta é uma geringonça que na falta de melhor expressão podemos provisoriamente chamar de capita-comunismo. Há, sim, muitas sociais democracias em profunda crise, infelizmente. A crise pode ser situada no esgotamento de certas formas de relações internacionais e dos Estados nacionais, aos quais subjazem muitas realizações e derivações da lex mercatoria.
Após a queda do muro de Berlim (1989) o mundo tornou-se mais globalmente ditado pelo mercado, mercado capitalista em suas relações díspares com a fração financeira, neoliberal. Daí não haver sentido em tomar Obama e Biden por socialistas, ou FHC e Lula como homens de esquerda. Não. São distintos, mas homens de mercado. E fazem parte do espectro neoliberal em seis contornos gerais. Como?
Hoje, basicamente duas forças disputam o mercado global na direção do capitalismo. Os EUA e aliados, decaindo e a China e parceiros, ascendendo. A China mantém um partido único mas o mercado em termos econômicos é não somente capitalista mas radicalmente capitalista sob a perspectiva da produção e da acumulação. O capitalismo não necessita de democracia para se desenvolver. A mais valia na terra de Mao TSE Tung faria Marx chorar, decepcionado. Jornada de dezesseis horas de trabalho. Zero de direitos sociais. Alienação no trabalho e fora dele, hiper-absoluta, ou neo-escravista, talvez.
Hoje não há que se falar em estado de direito entre chineses. Talvez no futuro possa advir na China uma revolução política burguesa nos marcos ocidentais. O consumo produz muitas revoluções e não há de se afastar a demanda reprimida por direitos. A luta de classes não acabou. Talvez o seu acirramento ainda não tenha sido bem diagnosticado nos seus meandros culturais.
Então nessa disputa global o capitalismo, livre da Guerra Fria, já não mais precisa competir com os defuntos dos socialismos reais. Eles se suicidaram um a um por efeito dominó após 1989, para tristeza de muitos stalinistas, até hoje. Mesmo Cuba e Coréia sobrevivem em grande medida com o apoio e/ou financiamento da China e consortes, principalmente, visando garantir interesses geopolíticos, nucleares, e da falsificação das restrições comerciais lideradas por aquele gigante.
A guerra atual se passa dentro do capitalismo e não mais primordialmente entre capitalismo e comunismo. Não que não haja antagonismos e que a díade esquerda/direita tenham morrido. Elas permanecem, senão desbotadas, embaçadas. Agora depara-se com uma luta por hegemonia ou direção dos mercados e do volume financeiro do Capital. Claro, trabalhadores devem, sempre pugnar por direitos conquistados, hoje sistematicamente sonegados ou mesmo excluídos das Leis. Mas há se reconhecer que ao se integrarem no consumo, de mercadorias e de direitos, mudanças culturais transformam trabalhadores em sua unidade “objetiva”, com consequências muitas.
A revolta contra a barbárie é pauta emancipatória, sem dúvidas. Uma pauta dos democratas, acima das cores. A opção pela Revolução passiva é uma restrição ao avanço democrático a médio e longo prazo, se a bandeira socialista se subsumir no “socialismo de governabilidade”. No máximo este atende a algo reparativo de danos, como anunciado acima, um conhecido jeitinho de legitimar a ordem, mudando para nada mudar. Essa ordem social do “mudar para nada mudar”, seguindo o princípio Lampedusa, é o remédio que integra a doença anunciado por Wilde. Ou alguém acredita que Lula deixou o governo em 2010 com um Brasil pacificado (superando os grandes conflitos), com educação (pública, ampla e universal); saúde (para todos, célere e competente); acesso trabalho (em todas as regiões do país e com plena ocupação) e fruição de segurança (eliminando as zonas de exclusão) e outros direitos fundamentais absolutamente enraizados nas conquistas sociais e na memória imaginária do político? Impossível em dois mandatos, ok. Mas também não se pode aceitar que todas as mazelas atuais devam-se ser tributadas aos quatro anos do governo Bolsonaro, por mais desastroso tenha sido.
Pois bem, Lula não é socialista, mas tenta desesperadamente ser democrata. Bolsonaro não é fascista (como o querem muitos analistas), sob pena de mitigarmos o fascismo na história do século XX, igualando totalitarismo e autoritarismo. Ambos, Bolsonaro e Lula são lideranças escoradas em quimeras de uma esquina de mundo deveras complexa.
“A legalização da classe trabalhadora” foi bem estudada desde Bernard Edelman. É isso, ganhos e “O amor ao censor” (Paul Legendre) andam juntos, acrescentaria. Como superar esse enrosco sem ceder à utopia de acadêmicos ou ao pragmatismo dos aloprados?
A democracia liberal que permitiu distribuir direitos revelou-se ineficaz e desnecessária, para ultraliberais e marxistas de raíz. Então as crises parlamentares, a impotência das instituições, Judiciário, setor público em geral, por falta de continuidade em investimentos e descaso das elites alienadas, abrem as portas para a oportunismo da ultradireita, mas também para os velhos leninistas de plantão com suas encebadas cantilenas sobre “análise de conjuntura”, estratégiace táticas, data da Revolução… Já não mais somente estes, a esquerda e direita, são exclusivos no anúncio (por razões e narrativas distintas), do embuste, da fadiga, da derrota, da impotência da democracia liberal. Liberais da direita intolerante desdenham as formas institucionais e se proclamam iliberais.
Agora a direita extremada aponta o mesmo problema para a ordem social por eles desejada, a democracia liberal, com a vantagem de atribuirem à certa esquerda “gestora do capital” a incompetência geral. Ultraliberais concebem o mundo como um caos no qual tudo de ruim deve ser atribuído a socialistas e ao liberalismo político. Memória seletiva pois apaga o papel originário de formas de poder milenárias e anteriores ao advento do socialismo na produção acumulada de exclusões.
A esse caldo ultraconservador coloca-se um ingrediente, o do retorno a um passado idílico, comunitário, de inexistência improvável. Nele transitam confusas posturas moralistas quanto aos costumes e tradições e a um mercado expurgado dos seus proxenetas. Há outros “truísmos”.
Não é à toa o uso das massas pentecostais e outras igrejas na cruzada dos costumes da ex- Ministra Damares Alves com a qual em nome do amor disseminam-se preconceitos. Afinal, proibe-se sexo antes do casamento, relações fora do padrão tradicional entre outros interditos, considerados como expressão do pecado, do Diabo e do fim do mundo.
Mas essa direita da direita além de caolha com o mundo lá fora, tropeça em suas contradições mais evidentes. Entre elas, como conciliar sua régua moral na ordem privada e o ser liberal no domínio público que tanto alardeiam na defesa da liberdade, enquanto alimentam e naturalizam o seu contrário.
Então concluímos com a hipótese que mais interessa provocar neste pequeno artigo: nossos protagonistas principais da luta social – liberais e socialistas, ou direita e esquerda, parecem reféns das emoções em prejuízo para a inteligência, daí suas fórmulas para salvar o futuro que aplicam remédios para reproduzir a doença social.
No que tange a Lula não ser socialista mas o responsável pela segunda onda de transformismo não lhe retira o mérito de derrotar as forças autoritárias do “iliberalismo” bolsonarista. Uma derrota a ser comemorada, mas não confundida como um oba-oba Redentor.
A crítica neste artigo somente têm sentido como registro da necessidade de rechear – e não de abandonar o pragmatismo, pois é certo que a política é a arte do possível, mas a ele agregar e não abandonar a chama da utopia, nela inserindo o indivíduo (este não é uma exclusividade do liberalismo ou do cristianismo), como salientou Oscar Wilde no livro mencionado na abertura. Afinal, “Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é digno de consulta, pois deixa de fora as terras à que a Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à gávea e, se divisa terras melhores, torna a içar velas. O progresso é concretização de utopias” (p.44).
Oxalá! Sem antolhos e com os olhos no futuro.