Capitalização, o pedaço que ainda não entrou na proposta de Paulo Guedes

Ministro Paulo Guedes

Por partes, como faria Jack, a proposta da reforma da previdência está sendo fatiada. O naco mais importante para o objetivo secundário da reforma, a capitalização, ainda não foi sequer apresentado ao mercado e aos parlamentares. Esta aí, porém, é que vai mudar tudo substancialmente.

Esta capitalização será a grande fonte de recursos para investimento a longo prazo, como nos países adiantados. Então falamos mais de capital do que de aposentadorias.

Mas dinheiro no cofre é importante para pagar pensionistas. Assim, o tesouro se livra da conta e o velhinho pode ter o seu garantido, como já ocorre com os inativos das estatais submetidas ao regime de CLT.

Esse é um modelo totalmente desconhecido no Brasil. O sistema norte-americano, que estaria em estudos, e não o chileno.

O olho do dono

Está muito distante dos formatos de relacionamento que se conhece no Brasil. Quando se fala no assunto tem-se como base o atual sistema de fundos de pensão patrocinados por grandes empresas ou o formato dos fundos de investimento privados de bancos ou independentes.

Tanto num quanto noutro, o quotista não tem ingerência na formação das carteiras de ações e dos portfólios de aplicações das contribuições. No sistema americano cada um sabe para onde está indo seu dinheiro e pode acompanhar o desempenho de suas carteiras no dia a dia.

Isto, aliás, explica porque tamanho sucesso dos jornais de economia e finanças e, mais recentemente, dos sites e blogues especializados. Toda a manhã a primeira coisa que cada americano faz é ver como estão indo os papéis de seu portfólio previdenciário.

Como é que funciona. Muito simples. Ao aderir a um fundo de aposentadoria, o participante faz um contrato de longo prazo, que prevê o resgate somente depois que a previdência oficial confirmar sua aposentadoria. Ou seja, depois dos 65 anos.

Para mexer antes disso só em casos previstos em lei. Diferentemente dos fundos de capitalização abertos, em que o investidor pode resgatar no dia e hora que quiser, este está vinculado à inatividade laboral. Este é o segredo: quem estiver aplicando só poderá mexer depois de velho.

Gestão dos fundos

A gestão, no lado da instituição, é apresentada ao participante num portfólio seguindo regras reguladas, em geral, pela lei. Estas regulamentações estipulam o leque de produtos que podem ou devem integrar o portfólio.

Define as margens de manobra dos gestores com máximos e mínimos: tanto por cento em títulos públicos, tanto em títulos privados, tanto em imóveis, tanto em ações blue chips, tanto em ações de maior risco. O participante pode mexer à vontade nas áreas livres, geralmente em papéis privados. Os títulos do tesouro sempre serão obrigatórios e constituirão o cerne da garantia.

No lado do participante, a contribuição do trabalhador terá um mínimo fixado em lei, mas pode ser maior, à vontade do segurado. Chama-se contribuição definida.

O resultado de sua carteira será o fundo para seus vencimentos de aposentadoria, pagos na forma que for acordado, em parcelas mensais, como é mais comum, ou tudo de uma vez, dependendo do que ficar estabelecido pela nova legislação.

Capitalismo puro sangue

Então como é isto, na prática? Um bom exemplo é a celeuma sobre o fechamento da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo, em São Paulo.

A Ford, como se sabe, é uma empresa de capital aberto, com acionistas no mundo inteiro, mas fortemente sustentada pelos fundos de aposentadoria dos Estados Unidos. Quando vai fazer um investimento, a proposta passa pelos olhos dos contribuintes de um ou mais fundos de aposentadoria que estejam interessados em participar da expansão da Ford no Brasil.

O que atrai a leitura do participante que abre o The Wall Street Journal? Saber o que está acontecendo no Brasil e como vão os negócios da empresa por aqui. Atualmente, o quadro não é animador para alguém botar seu dinheirinho.

O que nele encontrou? A Ford dando prejuízo. E o País? Desde 2015 está em recessão ou crescimento pífio (a este investidor não importa se é Dilma, Temer ou Bolsonaro. Aliás nem sabe quem seriam essas pessoas).

E os papéis de empresas brasileiras negociadas nos Estados Unidos? Micaram por motivos vários: má gestão, improbidade e investimentos errados.

Então ele coça as orelhas quando vê o nome do Brasil na proposta de investimento em seu portfólio. Aí vai para o desempenho da Ford: a empresa está no vermelho no Brasil.

Soma tudo, só vê negativo: lápis vermelho. Isto é capitalismo em estado puro: deu, deu; não deu, não deu! Sua ordem para o operador do fundo: caia fora imediatamente.

Em resumo: a empresa vai mal, os governos são caóticos (não esquecer que a campanha anti-Bolsonaro no exterior é arrasadora), o estado está falido e não consegue reformar-se para se equilibrar, a América do Sul em crise, ameaçada de uma guerra contra os Estados Unidos (é difícil separar Venezuela do resto do subcontinente para uma pessoa mediana do Meio-Oeste).

Gestão política

E na microeconomia? A Ford mudou todo seu comando no País. O chefão é James Hackett, que já trabalhou no Brasil e está de volta com a missão de acabar com o “prejú”; depois dele vem o irlandês Lyle Watter, também conhecedor do mercado brasileiro, igualmente na corda bamba.

O presidente mundial, Ricardo Zuniga, já foi executivo da Ford em São Paulo. Ou seja: está nas mãos de especialistas. Todos estes sugerem que devem fechar a fábrica de São Bernardo do Campo, e demitir 3.000 dos 14 mil funcionários diretos que a empresa tem no País.

Para reverter esse quadro, o que se faz em São Paulo? Os dois envolvidos diretos, o prefeito Orlando Morando, do PSDB, e o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, Wagner Santana, o Wagnão da CUT, estão desesperados.

Cada empregado da Ford gera 9 mil postos de trabalho na cidade. 27 mil desempregados, fora o prejuízo a toda a rede de serviços da cidade. E o município? Tragédia. O que fazer? Recorrer ao governo é o que se faz no Brasil.

Sem noção de como essas coisas funcionam, decidiram procurar o cônsul geral dos Estados Unidos em São Paulo, Adam Shub. O problema é que na América o governo não se mete em nada.

Faltam investidores

Resta apelos para o governador João Dória, correligionário do prefeito. Homem de negócios, Dória conhece o sistema.

Prontificou-se a fazer o que estivesse a seu alcance, mas sem muitas esperanças. Seu secretário de Fazenda, Henrique Meirelles, diz que poderia captar investidores e oferecer à Ford os recursos necessários para manter a planta operando.

A empresa certamente aceitaria. O problema da Ford é exatamente esse, investidores. A fábrica de caminhões e do automóvel Fiesta é eficiente e o mercado está favorável.

Entretanto, precisa de investimentos, de dinheiro novo para crescer e se sustentar, pagando fornecedores e salários de seus empregados. É assim que funciona.

Nos anos 1950, quando se instalaram no Brasil as indústrias automotivas, quase todas tinham sócios brasileiros. Somente a Ford e a General Motors, que estavam no País como montadoras desde o final de Primeira Guerra Mundial, fizeram tudo com capital próprio.

Capital próprio entre aspas. Com o dinheiro dos participantes do plano de aposentadoria, em tese, por decisão de cada contribuinte.

O meu pirão primeiro

Mesmo que fosse um fundo brasileiro, dificilmente um participante apoiaria o investimento num projeto deficitário ou sem futuro garantido. Os indivíduos sempre pensam primeiro o meu, tal qual os integrantes de muitas categorias que, atualmente, no Brasil, apoiam medidas para retomar o crescimento da economia desde que não se mexa em seus bolsos.

Concordam com o bordão do “tem de acabar com os privilégios”, mas eu fora. O mesmo diz o acionista americano: Brasil muito bonitinho, mas o meu tem de estar garantido.

Essa é uma discussão para logo que se resolver no Parlamento a questão dos contribuintes do plano básico de repartição entre gerações, a primeira fatia da reforma. Essa é a carne de pescoço.

Fim do bem-estar social

O filé mignon vem depois. Na verdade, não seria necessário ser obrigatório aderir a um fundo de capitalização previdenciário. Isto já vem acontecendo na Europa, com a falência do estado de bem-estar dos países social-democratas, a migração em massa do sistema público para o de capitalização.

É uma debandada vertiginosa do sistema antigo, mesmo entre trabalhadores com muitos anos e muitos direitos adquiridos. Os vencimentos ficam maiores.

No Brasil, mesmo, os participantes dos fundos de pensão das estatais estão em melhor situação que os funcionários estatutários, e ainda não levam a pecha de privilegiados.

O governo, entretanto, não se arriscou a colocar tudo na mesa, pois uma má ideia derruba tudo, levando os bons projetos de roldão. Sempre foi assim. Melhor esperar.

Passando esse engasga-gato, pode botar a picanha no fogo (ou o equivalente em sabor para vegetarianos e veganos). A campanha está apenas começando.

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