Jornalista só é notícia quando morre. Esta é uma velha máxima das redações. Quando a morte é trágica, o fato ganha ainda maiores dimensões.
É o caso de Ricardo Boechat, que teve seu fim como um verdadeiro jornalista, voltando de um evento de imprensa, num acidente aéreo. Os aviões são assassinos contumazes de repórteres. Morreu em combate.
Gazeta, o 4º maior
Ricardo e este repórter fomos amigos da vida inteira desde que, na juventude, juntos vivemos um dos grandes acontecimentos da imprensa brasileira. São dessas coisas que juntam pessoas, e que, depois, continuam identificadas por todas suas existências.
Em 1977 eu era o chefe da sucursal do Rio de Janeiro de um jornal emergente, a Gazeta Mercantil, que depois veio a se tornar o quarto maior jornal de economia e negócios do mundo, só menor que o Nikkei Shimbun, de Tóquio, o maior, seguido pelo The Wall Street Journal, de Nova York, o Financial Times, de Londres e, bem abaixo, mas no quarto posto, a Gazeta, de São Paulo, posição medida pela tiragem e pelo faturamento.
Isto, entretanto, veio depois. Nestes tempos, a “Mercantil” era ainda uma publicação ascendente. Entretanto, embora ainda pequeno perto dos diários da época, já era muito influente. E ousado.
Naqueles anos, o Rio de Janeiro ainda era a capital da vida econômica do País. Na antiga Guanabara ficavam os gabinetes operacionais dos ministros da área econômica, as estatais (a CACEX, do Banco do Brasil, era um verdadeiro ministério), a bolsa de valores, enfim, no Rio acontecia o noticiário econômico.
Mas a Gazeta era impressa em São Paulo, sujeita a chuvas e trovoadas, literalmente: qualquer problema meteorológico atrasava os aviões que traziam o jornal impresso de São Paulo. Isto produzia uma gritaria justa dos assinantes.
Como responsável na cidade, eu pagava o pato. Meus ouvidos ferviam.
Apoio decisivo
Era fundamental que estivéssemos na mesa dos empresários e dos governantes ao amanhecer. Foi então que entrou Boechat nesse projeto.
Conhecia Ricardo Boechat como assessor de imprensa do presidente da Embratel, Haroldo Corrêa de Mattos, um engenheiro originário da Marinha, mas muito aberto, um tipo moderno que não fazia o padrão carrancudo dos administradores militares da época. Tinha boas relações com os dois, que eram fontes do jornal.
Foi assim, corriqueira, nossa relação, até surgir esse desafio: imprimir um jornal diário simultaneamente em duas cidades. Isto só havia nos Estados Unidos, onde o The Wall Street Journal imprimia em 14 cidades.
Também impresso à distância, no Japão, o Nikkei, que tirava incríveis três milhões de exemplares diários, enquanto o Journal tirava 800 mil e o Financial Times, 200 mil. Nossa Gazeta ainda não chegara aos 30 mil (quando entrou em colapso tinha 150 mil exemplares diários impressos em todas as capitais e vendidos em todo o país).
A Gazeta decidiu comprar uma máquina daquelas e imprimir no Rio de Janeiro. Dois diretores, Roberto Muller Filho e Mário Ernesto Humberg, foram a Nova York para ver o sistema dos americanos. Tudo decidido, surgiu o problema.
A Embratel não tinha capacidade técnica para operar a transmissão. Na base, era muita carga; no topo, sobrava muito, era só para tevê a cores. Nosso sistema ficava no meio.
Foi então que Ricardo pegou o touro a unha. Não se rendeu aos técnicos e convenceu seu presidente a forçar a barra. Para sorte sua, Haroldo, no meio do processo, foi promovido a ministro da Comunicações. Então tudo se resolveu. Mas não foi fácil.
Visionário
Ricardo e eu tivemos momentos dramáticos, quase derrotados pelo desânimo. Mas isto lhe devo, ele nunca se conformou.
Lutou abrindo portas, forçando situações, até que a Embratel encontrou uma solução e pudemos botar nosso sistema em operação, o primeiro no Hemisfério Sul. Isto a imprensa brasileira deve a Ricardo Boechat. Ele foi um visionário.
Em resumo: o equipamento era de um sistema novo no mundo (foi a primeira máquina deste tipo a funcionar no planeta) chamado “Laserit”, que depois ficou denominado “laser” e conhecido pelos jornalistas de todo o País.
Este Laserit permitia a transmissão simultânea, através de micro-ondas, de uma página do jornal “pestapada”, em 90 segundos. O processo se desenvolvia a partir da leitura da página matriz, que era convertida em impulsos eletrônicos para onde uma unidade receptora registrava os impulsos em um filme.
Revelado, esse filme transformava-se na própria matriz, permitindo a impressão em diversos locais ao mesmo tempo e agilizando, assim, o processo de distribuição do jornal físico.
A grande dificuldade, no período de desenvolvimento, foi que as linhas telefônicas tinham capacidade de 4K e a transmissão pelo novo sistema exigia 80K. Obstáculo intransponível para técnicos e burocratas.
Ricardo não se conformou, fuçando daqui e dali, descobrindo que havia um canal de televisão com 240K transmitidos em micro-ondas que ficava vago pela madrugada, abrindo uma janela para o jornal.
Foi com motivação e pressão de Ricardo que o ministro conseguiu que as resistências da burocracia e das instâncias técnicas fossem vencidas e o sistema implantado. Logo em seguida, expandiu-se para Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte e Curitiba.
Ainda não havia internet nem transmissão de dados. Aquilo era imagem pura. Foi um feito tecnológico e, principalmente, jornalístico. Ricardo Boechat foi o viabilizador de fato.
Chope no Lamas
Quando o sistema foi festivamente inaugurado, em 6 de novembro de 1979, nenhum dos dois estava na sala de autoridades. Enquanto o governador paulista, Paulo Maluf, e o do Rio, Chagas Freitas, viravam a chave que movia as máquinas nas duas cidades ao mesmo tempo, nós dois comemoramos com uma choppada no Lamas, o bar e restaurante da jornalistada no Rio de Janeiro desde os tempos de Dom Pedro II (que foi frequentador do boteco).
Essa façanha nos uniu. Ficamos amigos de vida inteira, sempre lembrando dessas jornadas em nossos encontros.
Neste momento, como ele foi primeiro, minha homenagem e minhas lembranças desse grande brasileiro que teve um papel decisivo não só como repórter e editor, mas também como ator na construção da imprensa brasileira.