Foi o saudoso jornalista e cientista político Ariosto Teixeira um dos primeiros a apontar para o fenômeno que ficou conhecido como judicialização da política. Um Legislativo fraco e um Executivo em crise permanente deram espaço para que o Judiciário, pela anomia e fraqueza dos dois outros poderes, começasse a legislar e a resolver diversas das questões políticas.
Foi assim que o Supremo Tribunal Federal permitiu, entre outras questões, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o aborto de bebês anencéfalos. O Congresso não tinha condições ou força para se organizar, a Justiça resolvia em seu lugar.
O fenômeno produziu um imenso protagonismo do Judiciário nos últimos anos. Virou coisa comum se recorrer ao Supremo para resolver as querelas que muitas vezes não eram jurídicas. De Corte discreta e sóbria, o STF foi ganhando destaque, seus ministros foram se tornando figuras conhecidas. Alguns ganharam aos olhos da sociedade aspecto de heróis. A toga virou a capa preta de um Batman justiceiro.
Neste momento em que a crise agora atinge o próprio Judiciário como um todo e o STF em particular, parece ter havido uma evolução daquele fenômeno que Ariosto enxergou lá atrás, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. A musculatura que superfortaleceu o Judiciário nos últimos anos parece ter evoluído da judicialização da política para a politização da Justiça. E aí está uma das raízes da crise que agora seriamente abala a reputação da Suprema Corte.
É claro que a Justiça e o Supremo sempre foram políticos. O próprio modelo de escolha dos ministros do STF por nós escolhido reforça esse aspecto. Os ministros são nomeados pelo presidente da República e sabatinados e aprovados pelo Senado Federal. Em tese, parece ser uma boa trama de diálogo entre os Poderes, envolver Executivo e Legislativo no processo de escolha dos juízes da Suprema Corte. Ocorre, porém que, nesse processo, os ministros entram devedores da escolha primeiro do presidente e da aprovação depois do Senado. Quando estão sendo escolhidos, fazem uma peregrinação pelos gabinetes dos senadores. O que acertam, o que prometem, fica eternamente entre eles.
Enquanto tais acordos e acertos continuavam formando o processo de escolha da Suprema Corte, ganhavam independência e força o Ministério Público e a Polícia Federal. Que se associaram numa jornada de saneamento da corrupção política. Uma jornada que só teria sentido se, evidentemente, culminasse com a condenação dos culpados. Na associação iniciada entre MP e PF, entrou também o Judiciário. Da primeira instância de Curitiba com Sérgio Moro ao STF.
O problema é que os tais acordos e compromissos para as escolhas parecem emergir dos subterrâneos à medida em que tal processo avança e esbarra nas suas idiossincrasias. Claramente, a divisão do Supremo – que muitas vezes vai às vias de fato – está na forma como os ministros compreendem o papel que devem ter nesse processo de saneamento da política. O que várias vezes também deixa transparecer as amizades e compromissos pregressos. Um processo que dividiu o Supremo.
Parte do STF discursa que MP e PF extrapolam das suas atribuições na escalada a que se impuseram. Que politizam as investigações. Que passam por cima das leis e das regras. Outra parte associa-se aos esforços saneadores. Seria risível se não fosse trágico na insegurança jurídica que provoca a história da Turma que prende contra a Turma que solta. As decisões de um ministro que são reformadas pela decisão de outro.
O último passo desse processo é o que estampa os nomes dos próprios ministros do Supremo no rol de denunciados no tal processo de saneamento. Assim como já vinha acontecendo com altos figurões dos outros dois poderes, os figurões do Judiciário passam também a ser os personagens dos vazamentos de processos para a imprensa, das investigações veladas, ganham as manchetes dos jornais e as capas de revista. De condenadores, caíram na vala comum dos condenados – pelo menos, dos condenados pela opinião pública. E apelam às vezes violentamente invocando os superpoderes que ou ganharam ou acharam ter ganho nos últimos anos.
Talvez devesse ser o ponto de inflexão a fazer com que nós, ingênuos brasileiros, parássemos de acreditar em mocinhos e bandidos. Deixássemos de delegar a santos milagreiros, mitos incontestes e combatentes de capa as nossas mazelas. O Brasil pode sair desse processo mais maduro. Ou continuar acreditando em contos da Carochinha. A escolha é nossa.