O Brasil segue para um novo conflito. Manifestações contra as pressões do sistema político sobre o governo por cargos e recursos eleitorais instigam ruídos para as reformas liberais como retaliação. A esquerda denuncia a construção de um golpe de estado. O centro uma afronta às instituições. No meio disso, um PIB pequeno, ameaças econômicas que vão do preço do petróleo ao coronavírus.
Muito bem. Como diz Humberto Gessinger, em uma versão mais atual de sua música “Toda Forma de Poder”, observando o circo que nos cerca, falta o pão de cada dia e sobra o que o diabo amassou. Mas quem é mesmo este diabo? Muito do que se acredita ser uma disputa entre direita, centro e esquerda, conceitos recentes, do tempo da Revolução Francesa, na cabeça de um número significativo de pessoas se trata de um conflito místico. Procura-se algo acima dos políticos e dos seus sistemas como alternativa.
É natural. Olhando de mais longe, entra e sai governo, os temas nacionais seguem os mesmos: desigualdade, corrupção, impostos altos, promessas não cumpridas. A ansiedade com o presente, a insegurança com o futuro e o ressentimento com o passado tomam conta dos brasileiros, estejam em que lado escolheram. É isso que explica que, em 2019, a lista dos livros mais vendidos, feita pelo jornal o Estado SP, apontava que, de 15 obras, exceto duas de youtubers voltadas ao público juvenil, todas foram de autoajuda.
Este contexto foi muito bem traduzido pelo monge Sato, do Templo Shin Budista de Brasília, em artigo “Refletindo no Carnaval de 2020”: “nos últimos 50 anos podemos dizer que alcançamos a era da fartura universal, da abundância infinita graças ao avanço científico e tecnológico, à recriação automática de algoritmos, propiciados pelo conhecimentos e pelo modo de produção e de reprodução capitalista”. Como terceirizamos a representação política e a salvação da alma, temos julgado personalidades e não causas e condições. Então, a busca religiosa e a por culpados e salvadores fazem do sofrimento brasileiro um sui generis: o sofrimento político. Por outro lado, é a manipulação deste sofrimento que embala resultados eleitorais, em um ano de disputa por prefeituras e vereadores, antessala da sucessão presidencial de 2022.
Ideologias e suas narrativas à parte, o país é recortado pelo sofrimento porque o que todo mundo gostaria é que as bonanças fossem permanentes e que os líderes não fossem tão insubstanciais: quem se considerava ético, é pego em malfeitos; quem prometia soluções para o desemprego, não dá conta do recado; quem promete estabilidade, desestabiliza. É por isso que, embora pareça que há um movimento para “sair dessa”, como ler autoajuda, cresce a violência política, escamoteando que as pessoas, em diversas escalas, apenas se sentem sós e mal-amadas, e procuram a sensação de pertencer a algo.
Os meios determinam os fins
Bertolt Brecht dizia que o pior analfabeto é o analfabeto político, pois ele não “participa dos acontecimentos políticos”, “não sabe o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas”. Todavia, como estamos todos encharcados de política neste 2020, sabem disso e escolhemos lados achando que estamos a mudar a política, quando apenas decidindo sobre o próximo ciclo de apogeu e queda, e, logo, de insatisfação.
Narcisista em si mesma, a humanidade se distrai com suas mil teorias do Estado e mil teorias econômicas, esmagando uns aos outros por fantasias existenciais – que os antigos hindus chamavam “Maya” – com a mesma facilidade com que se decide cortar uma árvore de dois mil anos de idade sob uma frívola discussão acerca de qual “projeto nacional” é melhor. É o que conduz a Nicolau Maquiavel, que praticamente fundou a cultura invertida do que é política, com postulados como: “zelai apenas pelos vossos próprios interesses”; “cobiçai e procurai obter tudo o que puderdes”; “matai os vossos inimigos e, se for necessário os vossos amigos”; “usai a força, em vez da bondade, ao tratardes com o próximo”; entre outras pérolas. Mas, antes de qualquer conceito bem elaborado, política é simplesmente a relação de poder que as pessoas estabelecem entre si, com as coisas e com o meio em que estão inseridas em uma equação de causa-efeito no espaço-tempo.
Deste modo, foi o monge Sato que trouxe uma proposta de iluminação sem intermediários: “levarmos [todos] em conta apenas dois princípios éticos: Ahinsa e Danna. Ahinsa significa a não violência, e Danna, a generosidade”. É buscar esta prática em relação ao outro no dia a dia, apesar dos defeitos que aquele manifestar, que pode mudar causas e condições de maneira duradoura, por aprimorar o emissor e o receptor reciprocamente. É o que interrompe confusões éticas como a do general Augusto Heleno.Tuitando sobre o encontro do papa Francisco com Lula, destacou a compaixão por criminosos “típicas de esquerdistas” do primeiro para com o petista. Em vez de raciocinar ideologicamente, Heleno poderia ter praticado preceitos católicos como oferecer a outra face e amar ao próximo. Entretanto, semelhante raciocínio vale quando o centro se autoproclama “ponto de equilíbrio” e a esquerda a “vida” contra a “morte”, que, no caso, seria, alegadamente, a antagonista direita.
O artigo “Livrai-nos do mal: como a biologia, não a religião, tornou os humanos morais”, publicado em setembro de 2019 na revista “New Scientist”, sustentou que, embora genes egoístas aumentem a sobrevivência, fazendo nosso instinto de sobrevivência – alçado às emoções de ganância e raiva – minar a moralidade, nossos cérebros de mamíferos fizeram um truque evolutivo: o uso da cooperação, alicerçada na empatia e no altruísmo, como a outra ponta da pinça da Seleção Natural. Esses bons sentimentos, encontrados também em insetos, aves, peixes em algum grau, foram determinantes para todos os seres que sobreviveram até aqui e, entre nós, está também na base do surgimento das religiões, aproximando-nos da nossa essência. No documentário Revolução Altruísta, há algumas pistas sobre ela: somos seres que conseguem, desde os três meses de idade, distinguir bem e mal, expressar senso de justiça e equidade, e se oferecer para sofrer no lugar do outro.
Se todos querem resetar o mundo e o Brasil, por quê não começar pela Revolução Altruísta? Evitamos o “stalinismo”, o “nazismo”, o progressismo positivista e a democracia que convive com a fome e com a corrupção.