Isolamento social e lei marcial como algo legítimo e natural. Que tempos! Estamos caminhando, a passos largos, para o Estado de exceção global. Prato cheio para o filósofo italiano Giorgio Agamben, que, nessa altura do campeonato, deve estar acompanhando, de perto, a marcha da quarentena em sua terra natal tão castigada pela Covid-19.
Alguém poderia imaginar, no início do ano, que estaríamos, quando as águas de março fechassem o verão, presos aos nossos lares? Talvez se, no lugar de surtos xenofóbicos e do individualismo exacerbado, tivéssemos dado guarida ao cuidado integral com o ser humano, nada disso estivesse acontecendo. Outra coisa bem diferente seria se já estivéssemos vivenciando a fraternidade humana, aquela “brotherhood of man” de que fala a canção de John Lennon: “no need for greed or hunger”…
Mas há males que vêm para o bem. Entre um panelaço e outro contra a ignorância, a inépcia e o desdém, o recolhimento forçado leva-nos à introspecção, volvendo-nos ao mundo interior.
Pomo-nos a pensar em nossos desígnios pessoais, no destino da humanidade e no sentido da própria vida. Apenas os idiotas de todo gênero ou os que se bastam com o entretenimento fútil da TV ou das redes sociais se salvam da angústia que, subitamente, se abate sobre todos que se veem submetidos à prisão domiciliar, sem ter cometido delito algum.
Quanto aos mais delicados, bem, resta-lhes a arte para amansar a dor. De minha parte, prefiro estar nesse time.
Não fosse o coronavírus, jamais teria percebido que três escritores laureados com o Prêmio Nobel de Literatura escreveram obras-primas sobre epidemias. Cada uma delas, a seu modo, capaz de nos tocar fundo.
Bom para quem, nessa quadra de recolhimento compulsório, ainda aprecia ler. Relaciono-os por ordem cronológica das publicações. Thomas Mann brindou-nos com “Morte em Veneza”; Albert Camus descreveu, de forma magnífica, um Estado autoritário em “A Peste”; e Gabriel Garcia Márquez viu em seu “O Amor nos Tempos do Cólera” o seu melhor trabalho. Recomendo-os aos que ainda conservam esse hábito cada vez mais raro: boa leitura!
Para os que não conseguem passar da segunda página de um livro, há, porém, um consolo. Todos esses livros foram convertidos para o cinema.
Para mim, a cidade de Oram estará sempre na Argélia de Camus, mas a famosa dupla de “O Beijo da Mulher Aranha”, William Hurt e Raul Julia, segura bem a peteca na versão cinematográfica de “A Peste”, na qual se transfere o palco da trama para a América Latina.
Javier Bardem, o protagonista de “O Amor nos Tempos do Cólera”, faz uma bela interpretação de Florentino Ariza, mesmo que seu desempenho não se possa comparar com a sua atuação em “Onde os Fracos não têm Vez”. Ademais, Fernanda Montenegro está soberba no papel da mãe de Ariza. E, de quebra, ter Cartagena de las Índias como cenário é um bálsamo para nossas almas abatidas.
Mas, inegavelmente, a versão, em película, de “Morte em Veneza”, levada a efeito pelo brilhante cineasta italiano Luchino Visconti supera tudo. É pura genialidade! Além disso, não há palavras para descrever as interpretações de Dick Bogard e Silvana Magano. A cena final do ocaso do maestro Gustav Aschenbach, ao som da Quinta Sinfonia de Mahler, é simplesmente sublime!
O escritor angolano Artur Carlos Pestana dos Santos, conhecido como Pepetela, escreveu um livro intitulado “A Gloriosa Família: no Tempo dos Flamengos”, em que está perpassada, na vida de um escravo, uma temática propícia aos tempos atuais. A liberdade encontra o seu momento mais denso no recôndito da cidadela inexpugnável do silêncio e da imaginação de cada um de nós.
Há, no Brasil, uma família que se acha gloriosa. A nossa vingança é que, em tempos de coronavírus, nenhum de seus membros, a começar pelo patriarca, será capaz de sorver essa liberdade que o silêncio e a imaginação podem nos proporcionar.
- Thales Chagas M. Coelho é advogado e mestre em Direito Constitucional pela UFMG