Certa vez eu estava no México fazendo uma reportagem para a Veja, revista em que trabalhei por quase vinte anos. Um belo dia, um señor perguntou a mim e a meu companheiro de equipe, o Tales Alvarenga, de que país nós vínhamos. Respondi-lhe que éramos brasileiros. Foi quando o nosso interlocutor mexicano retrucou, exultante:
– Amigos, como el Brasil no hay dos!!!
Interessante a maneira do senhor do mexicano dizer como o Brasil é único, que não existe outro país igual.
Diante de afirmação de tamanha personalidade, passei a dar mais atenção ainda na característica rara do país onde nasci. E realmente é impressionante o jeito do nosso povo. Da criatividade à alegria. Encantador o convívio de mais de 200 milhões de pessoas falando o mesmo idioma e vindas de origens tão diversificadas, num território continental. Singulares a cultura visual e a variedade musical. A hospitalidade, a ginástica que o brasileiro faz para sobreviver, os desacertos que faz quando vota etc.
Pois bem, tempos depois eu estava bem distante do México. Estava no sertão do Ceará. Como sempre faço, nunca deixo de ir ao mercado popular das cidades aonde estou observar e fotografar os tipos que bem incorporam o chamado Brasil profundo. Foi justamente na feirinha de sábado, em Iguatú, que encontrei esse figuraça aí da foto, o Aluízio Carneiro da Silva, um quarentão.
Há 17 anos, Aluízio havia deixado a profissão de “predêro” porque considerava o trabalho muito pesado. Não se deu bem levantando paredes, com tijolos e argamassa. Pensou em algo mais leve para seu futuro, de sua mulher e dos três filhos. Então resolveu esmerar-se em algo que quase ninguém fazia: consertar isqueiros descartáveis, daqueles de plástico. Isso mesmo, virou consertador de isqueiros de plástico daqueles baratinhos. Somente esses. Jamais ouviu falar dos famosos acendedores de cigarros Ronson, Zenith e Zippo, de aço, caríssimos e clássicos da história dos fumantes.
Não sou sociólogo, mas sempre me preocupei em fazer fotos que espelhem aspectos que expressam a sociedade, a maneira de viver do povo. Importante que um fotógrafo tenha o olhar humanista.
No mundo atual a indústria força o consumo extremo. Os produtos são cada vez mais descartáveis, feitos para durar o tempo mínimo para que se adquira outro novinho. A máxima de fazer girar a Economia. Portanto, um isqueiro plástico se torna, nesse caso aqui, uma porta para entender o comportamento da coletividade do nosso planeta.
Vamos tentar avaliar o tamanho do mercado de trabalho do nosso Aluízio. Primeiramente, o hábito de fumar está em plena decadência. Fumar ficou brega, antissocial, perigoso para a saúde. E caro. É cada vez menor o número de pessoas que fumam. Desses tabagistas, quantas usam isqueiros para acender seus cigarros? Quantas ainda preferem os fósforos? E das que usam acendedores, quantas preferem os de plástico? Ainda, desse pequeno universo, quantos têm seus isqueiros quebrados? Mais: desses, quantos os levam para consertar? Ou seja, resta ao nosso querido personagem uma quantidade mínima como clientela.
Logo após fazer essa foto aí, entrei no primeiro barzinho que encontrei na mesma feira para tomar o preço de um isqueiro de plástico. Três reais. Eu queria fazer um cálculo, ainda que impreciso, da renda mensal do nosso Aluízio Carneiro da Silva. Indaguei quantos daqueles aparelhinhos de produzir chamas eram vendidos por dia. Não mais que três. Às vezes nenhum.
Sendo otimistas, vamos calcular que, ao fim do mês, aquele bar venda 90 isqueirinhos. E que a quantidade de fregueses de Aluízio se estenda aos vinte outros bares do local. Logo, o número de peças que formam seu mercado de trabalho seria de 1.800. Desse conjunto, quantos se quebrarão e que número irá parar na mesinha da pequena oficina de nosso consertador de isqueiros? Digamos que dez por cento. Isto viria perfazer 180 unidades, sendo bem otimistas
Levando em conta que cada isqueiro custa três reais, vamos considerar que somente seria vantajoso para o possível freguês de Aluízio se o preço para repará-los fosse de no máximo dois reais, dois terços de um novinho. Isto leva ao resultado aproximado de quanto fatura por mês o nosso Aluízio: 360 reais.
É preciso levar considerar também o quanto nosso bravo personagem gasta com as peças que utiliza para reposição. Ou seja, o custo com a compra de pequenas molas, grampos, hastes, o esmeril, tubinhos, material de reposição, enfim. Imagino que para aumentar seu lucro, Aluízio conta com o reabastecimento de gás e a recarga de pedras que produzem a faísca nos tais isqueirinhos. Esse serviço lhe poupa mão-de-obra e lhe rende centavos a mais.
Iguatu é a terra natal de três ases da música brasileira. Do consagrado maestro Eleazar de Carvalho; do compositor de belas melodias românticas Evaldo Gouveia, e de Humberto Teixeira, o parceiro de Luís Gonzaga, o “Rei do Baião”. Depois de fotografá-lo, ouvi do sorridente Aluízio:
– Deus dá a cada pessoa um caminho para vencer na vida. Uns, escolhem a arte. Outros conseguem ser doutor. Muitos arranjam emprego de vendedor e alguns preferem a malandragem. Eu recebi o dom de consertar isqueiros.
E é com o dinheirinho resultante desse trabalho que Aluízio sustém sua família.