Reparem nessa história que vou contar em três capítulos:
Há muitos anos sou amigo do cacique Aritana, capitão dos índios Yawalapiti, e seu irmão Piracumã, nomes importantes e respeitados nas aldeias do Parque Nacional do Xingu, em Mato Grosso. Fotografei Aritana ainda jovem, quando foi tema de novela em horário nobre da hoje extinta tevê Tupi, nos idos 1978 e 9. Muitas vezes dirigi minhas câmaras para o líder dos yawalapitis durante as cerimônias do Quarup, a celebração que os indígenas fazem para lamentar os mortos de cada ano.
O tempo passou. Um dia eu soube que Aritana não estava bem de saúde, internado no Hospital Universitário de Brasília. Liguei para o Piracumã, que o acompanhava, e fui visita-lo. Encontrei-o no leito da enfermaria bem alquebrado, fraco, mas com bons sinais de recuperação. Meses depois, Aritana telefonou-me para agradecer a solidariedade da visita convidou-me para a próxima festa do Quarup que em breve seria realizada em sua aldeia.
Tive, então, a ideia de ir à festa em companhia de três amigos fotógrafos: o Evandro Teixeira, o Igo Estrela e o Rogério Reis e a esposa, Maíra. Convidados pelo grande chefe Yawalapiti, conseguimos autorização da Funai para nossa presença. Nos cotizamos para alugar um pequeno bimotor e voamos para lá, os cinco. Bonita viagem pelo céu do Centro-Oeste.
Após duas ou três horas de voo, pousamos na pista empoeirada do Posto Leonardo, a “capital” do Parque do Xingu. Sete quilômetros separam o Posto Leonardo da aldeia Yawalapiti. Por estar atarefado com a organização do festival, Aritana e Piracumã não se lembraram de enviar um carro para nos transportar do Leonardo até a sede de sua aldeia. Aliás, uma belíssima aldeia.
E é justamente aí que entra em cena o personagem central dessa história: o surpreendente e bem humorado Yanahin Matala Waurá. E que terminará de maneira realmente surpreendente. Figuraça.
Assim que pousamos no Posto Leonardo, Rogério e Maíra, Igo Estrela, Evandro Teixeira e eu nos sentamos à sombra da asa do bimotor que nos levara, em busca de uma solução para chegarmos até os yawalapitis. Foi quando se aproximou de nós o Yanahin, um guerreiro da etnia Wuará, uma das 16 nações que habitam o território do Xingu. Ofereceu-nos carona em seu jipe Toyota, com o qual trabalhava nas cidades vizinhas do parque – Canarana, Xavantina, Gaúcha do Norte – fazendo fretes para amealhar renda.
Porém, para nos levar, precisava que lhe déssemos “duas onças” para abastecer o automóvel. Duas onças?, perguntamos. Yanahin, então, sorrindo, nos disse:
– Como pode vocês da cidade grande e que são fotógrafos não conhecerem nem perceberem que há uma cédula da moeda Real com a imagem de uma onça pintada no seu verso? Com certeza, também nunca repararam que na de 100 reais há um peixe. Na de 20, um macaco e, na de 2, uma tartaruga.
Realmente. Os cinco forasteiros nos olhamos e entendemos que o trajeto nos custaria duas “onças”, ou seja um par de notas de cinquenta reais. Interessante. Yanahin sabia o valor de cada nota não pelos números ou pelo valor monetário que elas têm, mas pelos animais da fauna brasileira impressos nelas.
Embarcamos no jipão do Yanahin e lá fomos nós pela estradinha sinuosa de terra a caminho da aldeia Yawalapiti. No caminho, nosso personagem botava mais atenção nas nossas câmaras que propriamente na trilha de areia. Curioso, interessado nas máquinas fotográficas. Olhava, tocava, sorria para as Nikons de Rogério, as Canons de Evandro e Igo e nas minhas Leicas. Todas modernas, digitais, com objetivas zoom, angulares, teles.
No caminho, a bordo da boleia dupla do Toyota conduzido pelo descontraído guerreiro waurá, cruzamos com vários índios que, a pé, de bicicleta ou moto, também se dirigiam à festa. Eram famílias, crianças, mulheres com filhos no colo, velhos, moças, grupos, enfim, de índios kamaiurá, awetí, mehináku, txicão, nafkwá, matipu, suiá, kuikuro, suiá, kalapalo…
Enfim, chegamos. Aritana estava atarefado e preocupado com a organização do Quarup. Orientava seu pessoal onde cada tribo visitante deveria montar suas barracas e redes de dormir. Cuidava da movimentação de quem chegava de canoa à beira do rio. Conferia a grande fogueira onde peixes eram assados para serem distribuídos aos índios das várias etnias. É uma tradição. Os yawalapitis, sob seu comando, tinham que dar demonstração de ser bons anfitriões. Piracumã nos recebeu com festa. E destinou para fixarmos nossas barraquinhas o quintal de sua própria casa, à sombra das mangueiras.
Yanahin nos ajudou em tudo. A desembarcar nossa tralha, a montar nossas barracas de plástico, amarrar as redes de dormir no vão de duas árvores. Pouco depois, o cacique Aritana veio nos dar boas vindas. E pediu a Yanahim que nos servisse de cicerone. Nem precisava. Sua curiosidade com a fotografia era tão grande que parecia ter encontrado pessoas certas para ajuda-lo a realizar um sonho: ser fotógrafo.
A tardinha caiu, a noite chegou e por fim a festa começou. Evandro Teixeira, Igo Estrela e Rogério Reis e eu fomos a campo. No centro da aldeia, ao pé de três troncos de árvore fincados no chão, as famílias choravam os parentes mortos naquele ano: um velhinho que faleceu por insuficiência respiratória. E, acho, um menino que não resistiu a uma picada de cobra. O terceiro tronco era em homenagem ao sociólogo falecido em 1997, Darcy Ribeiro, aliás,com os irmãos Villas-Boas, idealizador do Parque do Xingu.
Cenas impactantes, os guerreiros de várias tribos correndo em fila portando grandes varas em fogo. Uma cerimônia impressionantemente carregada de sentimento, visual surreal e diferente. E o Yanahin, sempre ao lado de um de nós, atento. Percebia-se que não tinha lá muita vocação para a dura vida de guerreiro. Observando-nos fotografar, curioso no resultado de cada clic.
A noite foi longa, com choro e réquiem pela morte dos dois índios naquele 2012. Lamento e dor. Nos primeiros raios daquele domingo de nuvens limpas, lindas, enfeitando o azul firme da floresta, as lágrimas cessaram e cederam lugar à alegria. Agora era a vez das danças e às lutas do Uka-uka, um torneio entre os guerreiros pintados com as cores de cada tribo. Um verdadeiro espetáculo de cores e movimento que propiciava muitas fotos.
Yanahin não resistiu. Pediu-me que lhe permitisse fazer ele mesmo um clic com minha câmara reserva. Evidentemente, concordei. Sua alegria era indisfarçável. Pendurou a moderna digital no pescoço, encheu-se de regozijo e desandou a apertar o disparador. Para cada sequência de disparos, um sorriso e o consequente gesto de olhar o visor traseiro da máquina para conferir o resultado da cena. Ficou embevecido. Sentiu-se fotógrafo.
Fim de festa, hora do retorno. Agradecemos a hospitalidade dos irmãos Aritana e Piracumã e demos parabéns pela perfeita organização do Quarup. Embarcamos no possante jipe do nosso novo amigo waurá de volta ao Posto Leonardo. Evandro Teixeira, Rogério Reis e Maíra para o Rio, onde moram. Igo e eu, para Brasília. Antes da decolagem, porém, Yanahin perguntou-me:
– Brito, rapaz, me diz seu e-mail? Você tem FaceBook? Vou trocar meu jipe Toyota por uma câmara, fazer umas fotos e te enviar para sua apreciação. E não duvide de minha capacidade. Não se esqueça!
Bem, essa é a primeira parte da interessante história do figuraça Yanahin Matala Waurá. No próximo texto conto o que sucedeu e no que resultaram os clics de Yanahin com a câmara digital que trocou pelo carro.
Leia e veja as fotos do próximo capítulo. Você vai se surpreender.
Esta é uma série de três postagens. Clique aqui para ver o segundo capítulo e aqui para o terceiro.