Amigos, essa é a terceira parte da fascinante história do índio Yanahin Matala Waurá. No primeiro texto, contei que fui fotografar a festa do Quarup na aldeia Yawalapiti, liderada pelo antigo amigo cacique Aritana, em companhia de três colegas, o Evandro Teixeira, o Igo Estrela e o Rogério Reis. Narrei ainda: para chegarmos à aldeia do capitão Aritana contamos com a ajuda do Yanahin, que nos levou em seu jipe Toyota do Posto Leonardo, a “capital” do Parque Nacional do Xingu, até a tribo onde se realizava o réquiem dos mortos daquele ano, 2012, e o festival de danças e lutas. Eu disse do imediato fascínio pela fotografia que o Yanahin teve ao reparar em nossas câmaras digitais.
Yanahin ficou tão impactado com estar próximo de fotógrafos que o incluímos em nosso grupo durante nossa breve estada na aldeia e até lhe facultamos fazer os primeiros clics de sua vida. Contei que nosso personagem conseguiu equipar sua aldeia de acesso à Internet e, usando e-mails e o FaceBook, passei a incentivar fizesse fotos dos povos do Xingu. As imagens que produziu acabaram levando-o a mostra-las em conferências no Exterior, como exemplar modelo de abordagem e documentação visual de um tema tão rico quanto é o modo de vida dos índios.
Muito bem, prosseguindo: semanas atrás encontrei em minha caixa de mensagens do Gmail novas fotos da sequencia que Yanahim sempre me envia. Fiquei impressionado com a qualidade de suas imagens, a importância antropológica que o guerreiro da tribo Waurá estava a produzir. Reconfortei-me ao ver que as “aulas” que lhe dava pela Internet estavam mesmo surtindo efeito bem positivo. Em nossas rotineiras conversas pela Net, perguntei-lhe como estava administrando sua vida. Disse-me:
– Divido meu tempo da seguinte maneira: durante a semana, de segunda à sexta, viajo pelas aldeias do Xingu porque faço parte da equipe de atendimento de saúde aos meus irmãos indígenas. Sou auxiliar de enfermagem. Somente três aldeias têm ligação por estrada de terra. As outras temos de ir de barco ou de avião, como é caso do Tanguro, que é bem isolada. Algumas delas levamos até um dia navegando pelo rio. Mas é a oportunidade que tenho para retratar detalhes e o cotidiano das etnias que habitam o parque.
– Daquele encontro que tive com vocês, lá em 2012, até hoje já enchi nove ou dez HDs de 1 terabyte, cada um, com fotos em alta resolução. Não sei o número preciso de clics. Mas imagino estar conseguindo retratar segundo meu ponto de vista tudo que vejo por aqui, a cultura do meu povo.
O dia de sábado reservo para a família. Sigo a tradição dos waurá. Aqui você pode ter até duas esposas, mas fica obrigado a garantir a alimentação e a formação da família. Casei-me com a Kaiana e a Mapalu. Com elas tenho dez filhos e já netos. E, ainda, uma filha que adotamos quando ela ficou órfã. Tenho muitas responsabilidades e por isso, aos sábados vou para a roça. Planto mandioca, abóbora, banana, tudo. E mesmo assim, não deixo de levar minha amiga Canon 6D.
O domingo, porém, é dia de descanso do guerreiro. Descanso, não. Na verdade, correria. Em alguma aldeia do Xingu há sempre uma partida de futebol entre os times das tribos. E adivinhe você quem é o juiz dos jogos? Claro, Yanahin Matala. Diz-se o melhor árbitro que há por lá. Justo e preciso, em cima de cada jogada. Porém, apito na boca e máquina fotográfica no pescoço.
– Às vezes, confesso, me perco. Ao invés de ficar atento às faltas, aos impedimentos ou a um gol, desvio minha atenção para retratar um lance. A torcida e os atletas já sabem. Aceito a convocação para mediar o jogo, mas meu objetivo principal é fotografa-lo de perto, dentro do campo. Em compensação, quando tenho alguma dúvida sobre um lance, consulto na hora a foto que fiz com minha digital. É o meu replay, como na tevê.
Perdi, porém, contato com o Yanahin por uns bons três meses. Semanas atrás, liguei para o “orelhão” instalado no centro da aldeia Piyulaga, o telefone comunitário da tribo Waurá. Eu queria tomar o pulso do andamento de seu trabalho. Yanahin disse-me que andou ausente porque estava em Paris. Em Paris? Sim, França. Uma equipe de tevê francesa havia ido ao Xingu e acabou também conhecendo suas fotos. E lá foi nosso personagem para mais uma apresentação de suas imagens.
Não encontrou tempo na agenda para visitar o Museu do Louvre. Porém, levaram-no para conhecer o Palácio de Versailles, residência dos mais importantes reis da França. Achou tudo muito bonito, mas bem diferente da realidade que encontra diariamente na selva. Ficou impactado com as pinturas expostas na parede e viu a importância que os artistas deram em reproduzir o modo de vida da época.
– Assim como grandes artistas retrataram os costumes da corte francesa, quero fotografar o cotidiano de minha aldeia. Já percebi que fazer o mesmo ao retratar meu povo em minha região é realmente importante. Me prometi que um dia seria fotógrafo. E tive a sorte de encontrar vocês no campo de pouso do Posto Leonardo com seu maravilhoso equipamento.
Yanahin adorou Paris, Assunção e Seul. Achou muito belo. Mas garante que nenhuma beleza supera o espetáculo que a natureza oferece na beira do Rio Xingu, quando o vermelho do sol se mistura com o azul das nuvens e contrastam com o verde da floresta. Aliás, foi inspirado na água, na terra e no sol que ele mesmo bolou o logotipo que põe no canto de suas imagens.
Aos poucos, Yanahin vai compondo a sequencia de seu trabalho. Considera que as crianças cantando karaokê e tocando violão são uma agressão à cultura dos índios. Mas comemora que elas continuem tendo aulas dos idiomas indígenas em suas aldeias.
Em nossos contumazes diálogos pelo FaceBook, disse-me que quando pediu duas “onças” para nos levar à festa do Quarup da aldeia Yawalapiti não pensou no par de notas de cinquenta reais como vantagem financeira. Era somente para abastecer de gasolina o jipe que nos transportou e ajudou a mudar o destino de sua vida.
– Ganhei três presentes. O primeiro, a chance de fazer os primeiros clics com uma câmara digital. O segundo, o incentivo para fotografar. E o terceiro, a escadinha de alumínio que Evandro Teixeira me deu como lembrança. É um troféu que uso até hoje para subir e tirar fotos de cima para baixo.
– Durante o desenvolvimento desse trabalho, vi que a questão indígena é muito mais ampla do que parece. Fico preocupado com a invasão do sistema de vida dos brancos de maneira danosa na cultura dos povos da floresta. Por esta razão, procuro incluir em minhas fotos o limite dessa convivência: a necessidade das maravilhas da tecnologia do mundo moderno com as tradições indígenas. Tenho o cuidado de incluir em minhas fotos utensílios industrializados, que denotam essa invasão. Não posso condenar isto nem absolver. Apenas tento mostrar. Importante que as pessoas percebam a dosagem de benefício e malefício.
Muito provavelmente haverá quem ponha defeitos, aponte imperfeições e faça crítica às fotos do nosso personagem. Com certeza será um equívoco, embora democrático, fazê-lo. Porém, seu trabalho vai muuuuito além disto. É um tremendo documento de parte da civilização. Antes de possíveis comentários negativos devem ter o cuidado de fazer uma leitura mais atenta, que vá além de somente do rigor estético, considerando os elementos e seres que constam das fotos. É preciso ler detalhes para não fazer cometários superficiais. Mas é como disse-me certa vez o próprio Yanahin:
– Mais importante para mim não é a simples beleza de uma foto, mas o as informações que ela traz.
Enfim, amigos, aí estão algumas fotografias do caro Yanahin. Um autêntico documento, surpreendente e verdadeiro. Não se trata de serem ou não “bonitas” suas fotos. Trata-se de um registro puro e eivado de realidade. Como sempre digo, uma fotografia é. É. Uma fotografia é. E acabou-se. As fotos de Yanahin são isso aí: um olhar de índio sobre os próprios índios. Simples e direto. Uma maravilha de visão sobre um tema antigo e que é sempre atual: os povos da floresta. É um farto material para estudo de senhoras e senhores, doutoras e doutores no assunto, que têm opinião, olhares e achares sobre a devida integração dos povos da floresta à “modernidade” das grandes cidades.
Não vi, evidentemente, todas as imagens desses 10 terabytes de autoria do Yanahin. Mas tenho certeza que são um garimpo repleto de preciosidades. Um rico documento à disposição de a quem interessar possa.
– Brito, rapaz, agora estou filmando, fazendo além de fotos, vídeos com a minha nova câmara, uma Canon Mark III 5D. Uma maravilha.
E eu, devotado em que Yanahin não corte a sequência de seu trabalho fotográfico, disse-lhe que achava interessante ele continuasse com a atenção voltada para fotos. Ponderei que, apesar de ser igualmente fascinante o vídeo, com imagens em movimento, iria mudar o rumo de seu trabalho. E veja só o que me respondeu o irrequieto Yanahin:
– Brito, amigo, você que está aí na cidade grande não sabe nada. Eu, que estou no distante Xingu, posso afirmar: o mundo mudou.
E como, caro Yanahin!
Esta é uma série de três postagens. Clique aqui para ler a primeira parte e aqui para a segunda.