O uso do cachimbo

Acho que era por ali, no início dos anos oitenta. Um jovem deputado do Piauí, na realidade suplente, foi convocado para assumir o cargo do titular. Feliz, quase deslumbrado, andava empolgado pelos corredores da Casa do Povo. Mesmo assim, não parecia um principiante recém-chegado, pois já conhecia um pouco daqueles caminhos.

Soube se aproximar dos velhos caciques e a respeitar as experientes raposas. Tudo era um aprendizado. Até que chegou o dia do pagamento, o primeiro salário de parlamentar e dos servidores. E também o da primeira surpresa. Uma humilde funcionária do gabinete, herança do velho deputado, tímida como ela só, pediu dois dedos de prosa em privado com o novo chefe. Não havia porquê negar a conversa. Medindo os passos e as palavras, ela, discretamente, depositou sobre a mesa do gabinete um pequeno envelope pardo.

Surpreso, o piauiense abriu o envelope e lá estava, em espécie, a metade do salário dela. Ele desconhecia essa prática, e devolveu o dinheiro. A moça caiu num choro copioso e agradeceu, perplexa, como se tivesse assistido a um milagre. E trabalhou por mais de 30 anos com o parlamentar, que virou um político influente e amigo de líderes históricos.
Essa história ilustra bem uma prática muito comum em todas as casas do Legislativo brasileiro.

Começa com os edis das câmaras municipais e vai até ao Senado Federal. E não faz distinção: o parlamentar pode ser de esquerda ou de direita, quase sempre tem a taxa de retorno, eufemismo picareta para receber de volta parte do salário dos próprios funcionários. Alguns envergonhados, justificam a prática como uma verba necessária para ajudar o desempenho do mandato.
Há casos curiosíssimos, como o funcionário que passa a ser patrão. Explico: ele tem que pagar o salário de alguém que não é contratado do órgão. Recebe e repassa um valor acordado para outra pessoa, que trabalha no mesmo gabinete sem um contrato formal. Assim, um assessor de imprensa pode pagar o salário do motorista do senador, por exemplo.

Outra prática muito comum é contratar com a verba de gabinete empregados domésticos. Bem, todo mundo sabia, todo mundo viu, mas não havia como provar até entrar o COAF na história. O que os Bolsonaro fazem é reproduzir uma prática corriqueira, quase natural nesse ambiente. Acontece que agora eles viraram vidraça. Mais: cresceram propagando que eram diferentes, éticos. Só inocentes, mal-intencionados e crentes poderiam acreditar que um deputado de sete mandatos de exercício no baixo clero seria diferente. Esses deputados e senadores, com a participação de todos os Bolsonaro, são como os dirigentes de Cuba. Exigem de sua gente uma parte do que ganham. Os trabalhadores são commodities.

E mudando o rumo em 180°…
O limite do horror

Ouvi um debate interessante sobre se há limite para o horror. Era a propósito dos setenta anos da declaração universal dos direitos humanos. Vários exemplos de violência contra as pessoas foram citados, os mais óbvios sobre os extermínios nos campos de concentração nazistas. Os atuais atentados terroristas também foram lembrados.
Mas, para mim, uma das faces do horror foi o parto de uma jovem mãe no chão de um hospital. Sim, de um hospital. Ela não estava numa manjedoura cercada por lúdicos animais, além do pai da criança. Estava no chão imundo do lugar onde deveria estar, uma maternidade. E para dar mais tintas ao horror, além de parir tentava provocar o choro da criança. Que parece, sobreviveu. Que horror!09

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